Porque e como muda o nível do mar
Eis uma viagem pelo nível médio do mar desde os últimos milhões de anos até aos últimos 30 anos de dados recolhidos por satélite, para se projectar o que poderá acontecer no final do século XXI.
O homem tem responsabilidade direta pelo facto de o século passado ter sido o período mais quente desde o início de nossa era. O conteúdo de dióxido de carbono na atmosfera aumentou nos últimos 150 anos em 45%, em relação ao máximo natural do último milhão de anos, como resultado da queima de combustíveis ricos em carbono e da desflorestação. Se esse processo não for interrompido, o que é provável, a temperatura média na superfície da Terra aumentará em, pelo menos 1,5 graus Celsius a quatro graus Celsius até 2100.
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O homem tem responsabilidade direta pelo facto de o século passado ter sido o período mais quente desde o início de nossa era. O conteúdo de dióxido de carbono na atmosfera aumentou nos últimos 150 anos em 45%, em relação ao máximo natural do último milhão de anos, como resultado da queima de combustíveis ricos em carbono e da desflorestação. Se esse processo não for interrompido, o que é provável, a temperatura média na superfície da Terra aumentará em, pelo menos 1,5 graus Celsius a quatro graus Celsius até 2100.
Uma das consequências mais dramáticas do aquecimento global é a ameaça nas áreas costeiras causada pelo aumento do nível do mar. Imagens de casas a cair no mar, em Portugal, na Grã-Bretanha, nos EUA, o desaparecimento de ilhas do Pacífico e de praias no Brasil, o recuo das falésias do Báltico e a inundação das ruas de Jacarta, Banguecoque e Veneza tornaram-se parte da nossa vida diária, relatada nos meios de comunicação. Informações precisas sobre a velocidade desse fenómeno são necessárias para desenvolver uma estratégia para gerir as zonas costeiras nas quais vivem mais de 2000 milhões de habitantes da Terra. Portugal, devido à natureza e extensão da zona costeira, tem razões particularmente fortes para desenvolver uma política de longo prazo para a gestão e o ordenamento da interface oceano-continente, que está a regredir por causa da redução da quantidade de sedimentos trazidos pelos dos rios e da elevação do nível das águas oceânicas.
A água do planeta Terra encontra-se dividida em três reservatórios interconectados: oceânico (96%), continental (1%) e gelo (3%). Este último é constituído principalmente pela calote polar da Antártica e pelo manto de gelo da Groenlândia, cuja fusão total poderia teoricamente elevar o nível do oceano em 76 metros.
A transferência de água de um reservatório para outro não é a única causa das flutuações do nível do mar. O nível do mar observado localmente, que intuitivamente reconhecemos como a elevação da superfície do oceano em relação a um ponto de referência fixo, geralmente localizado na costa, dependerá efetivamente de quatro fatores: mudanças do volume da água no reservatório oceânico; movimentos verticais da superfície terrestre; quantidade de água contida em cada um dos reservatórios em cima mencionados; e temperatura da água que controla o seu volume. A estes quatro fatores juntam-se ainda os processos decorrentes de mudanças mais rápidas, relacionadas com o estado da atmosfera, a retenção de precipitação nos continentes (especialmente associada a grandes furacões tropicais) e a flutuação da atração gravítica da Lua e do Sol.
Assim, o nível do mar que observamos muda num intervalo muito amplo de escalas temporais: de segundos a milhões de anos, com uma frequente sobreposição dos processos causais. Para o seu estudo, forçosamente complicado, são aplicados requisitos específicos para determinar com elevada precisão o chamado “nível médio do mar” (NMM) utilizado para fins cartográficos e geodésicos, bem como para as previsões de subida do NMM com base em modelos matemáticos.
História da observação e fonte de informação sobre o nível do mar
Não é de surpreender que, dada a sua alta frequência (12 horas) e a dimensão (por vezes vários metros), o fenómeno das marés seja o primeiro tipo de mudança na altura da superfície da água do mar racionalmente assimilada pelo homem.
As estruturas portuárias foram adaptadas pela primeira vez às marés por volta do terceiro milénio a.C., na Índia, em Lothal, próximo da atual cidade de Ahmedabad. Por outro lado, as marés de pequena amplitude no Mediterrâneo explicam a enorme surpresa e as dificuldades práticas que as marés do oceano Índico e do oceano Atlântico representavam para as campanhas militares de Alexandre, o Grande, e Júlio César. A periodicidade das marés e sua relação com as fases da Lua foram descritas e publicadas por Seleukos na Babilónia e, três séculos depois, nas obras dos grandes filósofos-geógrafos romanos: Estrabão e Plínio, o Velho.
Os alicerces da moderna compreensão das marés como resultado da atração gravítica lunar e solar ficaram a dever-se aos postulados de Johannes Kepler (1571-1630), não sem a oposição dos seus contemporâneos, como por exemplo de Galileu, que chegou a ridicularizar Kepler. Meio século mais tarde, as ideias de Kepler foram retomadas e enquadradas nas leis da gravidade por Isaac Newton (1642-1727). Os subsequentes trabalhos publicados por vários autores ao longo dos séculos XVII e XIX tornaram o fenómeno das oscilações mareais matematicamente descritível e, portanto, passível de previsão. Para tal, foram fundamentais as obras de William Whewell (1794-1866), que, inspirado nos métodos de análise matemática de Pierre-Simon de Laplace (1749–1827), foi pioneiro na análise das séries temporais maregráficas de que resultaram nas tabelas de marés para os principais portos do Reino Unido e no primeiro mapa das linhas co-tidais no Atlântico. A continuação deste trabalho foi de certa forma concluída por Kelvin, que, depois de aplicar a análise harmónica a séries maregráficas, construiu um engenho denominado “máquina de previsão das marés” ou, na realidade, um computador mecânico análogo.
Quase contemporaneamente à publicação dos trabalhos de Whewell, Henry R. Palmer construiu, em1831, o primeiro marégrafo de registo contínuo, instalado na doca de Londres. Nos anos a seguir, mais marégrafos deste tipo foram colocados na proximidade dos grandes portos europeus, nos EUA e na Austrália, para auxiliar a navegação e/ou com propósitos militares. Assim, na década de 80 do século XIX já estavam operacionais no continente europeu cerca de 70 marégrafos, entre os quais o da marina de Cascais, provavelmente o único aparelho colocado frente ao mar aberto e, por conseguinte, não afetado pelo processo de subsidência frequente nos estuários. A dupla função do marégrafo que consiste em medir a amplitude das marés e definir o nível médio do mar em relação a uma referência fixa próxima foi por sua vez uma peça chave para o desenvolvimento do sistema de datum geodésico nacional ou, por outras palavras, de níveis de referência para levantamentos cartográficos. Um novo capítulo no estudo da topografia do fundo do mar começou em 1978, quando os EUA colocaram o satélite Seasat em órbita. Este satélite, embora tenha desaparecido após 106 dias por razões desconhecidas, forneceu os primeiros dados sobre a forma da superfície do oceano global, modulada pela força da gravidade.
Após um intervalo de 14 anos, as medições regulares da altura do nível do mar em relação à superfície do elipsóide terrestre foram iniciadas em 1992 pelo satélite franco-americano TOPEX/Poseidon. Por mais de 13 anos, os telémetros a laser instalados executavam uma cartografia sistemática da altitude (altimetria) da superfície do mar com a precisão de cerca de +/- 3,5 centímetros. A continuação desta missão com crescente precisão garantiu, até hoje, as missões de satélites da NASA em cooperação com a Agência Espacial Europeia (ESA): os Jason-1, 2 e 3.
As informações sobre o nível do mar, antes da segunda metade do século XIX, são devidas a observações geológicas e arqueológicas. A associação causal das eras glaciais no Hemisfério Norte com as mudanças no volume de água do mar deve-se ao naturalista suíço Luis Agassiz (1807-1873). No entanto, dados sobre o nível do mar passado (no sentido temporal de milhares e milhões de anos) começaram a assumir caráter quantitativo desde a segunda metade do século passado, com o desenvolvimento de técnicas isotópicas que permitem calcular a idade das rochas/sedimentos e achados arqueológicos e a quantidade de gelo existente na superfície da Terra. Graças a essas metodologias, foi possível reconstituir o nível do mar ao longo dos últimos milhões de anos e com precisão do decímetro para os últimos 120.000 anos.
Mudanças do nível do mar calculado com base em observações por satélite – últimos 30 anos
A integração de uma série de observações altimétricas feitas para todo o mundo por quatro missões de satélites é aqui mostrada numa figura. A tendência observada para o aumento do nível do mar nas últimas décadas é de 3,1 milímetros por ano.
Esta é uma tendência média, sem levar em conta as flutuações climáticas interanuais e as mudanças na quantidade de água retida nos seus três principais reservatórios (oceanos, glaciares, águas interiores). Por exemplo, um ano chuvoso na Austrália significa a transferência de massas significativas de água para o centro não drenado do continente e, portanto, uma queda relativa no nível do mar.
Nível do mar calculado com base nas observações maregráficas – últimos 150 anos
Na segunda metade do seculo XX, a análise de séries de marés registadas pelos marégrafos constituiu a principal ferramenta para o estudo de oscilações rápidas do nível do mar, causadas por mudanças da pressão atmosférica e tsunami, mas também para rastrear mudanças numa escala temporal de anos e décadas. A análise desses registos, que abrange o último século e meio, é coordenada internacionalmente pelo Serviço Permanente de Nível Médio do Mar (PSMSL) com sede em Inglaterra. Apesar das dificuldades em correlacionar os pontos de observação dispersos pelo mundo, tudo indica que a aceleração da subida do nível do mar, desde o início do século XX, é consequência da atividade humana. O valor da taxa média da subida no último século é de cerca de 1,7 milímetros por ano, com tendência para acelerar. Exceptuam-se algumas regiões localizadas em altas latitudes no Hemisfério Norte, onde, deste a última glaciação, a elevação das massas continentais é mais rápida do que a do NMM.
Nível do mar estimado com base em dados geológicos – últimos 125 mil anos
Apesar da precisão cada vez maior, os registos instrumentais das alterações no nível do mar cobrem um período muito curto de tempo em relação à escala de tempo dos processos que controlam o volume de água do oceano. O registo geológico indica que, durante o último período mais quente que o atual período interglacial, há cerca de 125 mil anos, o nível médio do mar foi entre cinco e nove metros mais alto do que presentemente. Há aproximadamente 116 mil anos o nível do mar começou a baixar como resultado de um arrefecimento gradual do clima, que culminou numa extensa glaciação no Hemisfério Norte, cujo máximo ocorreu há cerca de 20 mil anos. Como consequência do desagravamento climático ocorrido a partir desta data, o NMM subiu, uma tendência que se mantém até aos nossos dias.
A história da transição da última glaciação para o atual período quente, que abrange os últimos 20.000 anos da história do globo, inclui a transferência de cerca de 35 milhões de quilómetros cúbicos de água resultante da fusão do gelo das calotes polares e mantos de gelo para o reservatório oceânico. Este conhecimento resulta da investigação em recifes coralinos, sedimentos de deltas e estuários e antigos terraços marinhos em várias partes do globo. Apesar das diferenças existentes nesses registos à escala global, a conclusão é inequívoca: a fusão do gelo causou uma subida do nível do mar em cerca de 120 metros e a inundação de 36 milhões de quilómetros quadrados das plataformas continentais (há 20.000 anos o continente europeu era 40% maior do que atualmente). A velocidade média da subida do nível do oceano foi próxima de dez milímetros por ano, embora tudo indique que esse processo poderia ter ocorrido em saltos, atingindo valores até quatro vezes superiores. O último salto desse tipo ocorreu há cerca de 7500 anos, quando vazou para o oceano Atlântico um gigantesco lago de águas glaciais situado na parte Norte dos EUA e Sul do Canadá. Durante os sete milénios seguintes, a velocidade de subida do NMM diminuiu para cerca de 1-1,5 milímetros por ano e foi o resultado do aquecimento dos oceanos e da entrada de água dos glaciares de montanha. As alterações referidas são consideradas representativas da variabilidade natural do sistema climático da Terra nos últimos dois milhões de anos.
Atualmente, estima-se que o aumento médio do nível do mar calculado para toda a Terra seja de 3 a 3,5 milímetros por ano, com pelo menos metade desse valor atribuível ao aquecimento climático induzido pelo homem. Tudo indica que o aumento observado do NMM resulta em partes iguais do aumento no volume de água do mar devido a um aumento da sua temperatura (efeito termostérico) e a um aumento de massa transferida da calote polar da Antártica Ocidental, do manto de gelo da Groenlândia e dos glaciares.
Particularmente preocupante é a aceleração da perda de gelo na Groenlândia, que pode atingir até 400.000 milhões de toneladas de água por ano, equivalente a um milímetro adicional no nível do mar. Porém, a taxa média anual de 3,5 milímetros pode ser ultrapassada ou diminuída localmente, devido a movimentos verticais da superfície da Terra. Por exemplo, na costa da Finlândia o mar está a recuar, porque a superfície continental sobe na sequência do derretimento da calota de gelo escandinava. A tendência inversa é observada, por exemplo, em Jacarta e Banguecoque, onde a superfície da terra abaixa devido à extração das águas subterrâneas. Apesar dessas diferenças, de acordo com as previsões do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas, ao assumir-se um aumento de temperatura de 1,5 graus Celsius até 2100 podemos esperar que o nível do mar suba no mínimo 50 centímetros. O máximo dependerá do nosso comportamento nas próximas décadas…
Cientistas do Centro de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Algarve (Faro); cientista do Instituto Geológico da Polónia (Varsóvia)
Os autores escrevem segundo o novo acordo ortográfico