Mary Lou McDonald é o rosto da “revolução” eleitoral do Sinn Féin
Peça-chave na transformação de um partido pária numa força popular, a sucessora de Gerry Adams reorientou a mensagem dos nacionalistas irlandeses para as questões sociais e conquistou o voto popular.
“I won’t fill Gerry’s shoes, but I brought my own shoes”. A frase é traduzível para algo como “os sapatos do Gerry não me cabem, mas eu trouxe os meus próprios sapatos”, e foi uma das passagens fortes do discurso de Mary Lou McDonald quando, em Fevereiro de 2018, foi confirmada como líder do Sinn Féin, substituindo o histórico Gerry Adams, que esteve ao leme dos nacionalistas irlandeses durante mais de 30 longos e tumultuosos anos.
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“I won’t fill Gerry’s shoes, but I brought my own shoes”. A frase é traduzível para algo como “os sapatos do Gerry não me cabem, mas eu trouxe os meus próprios sapatos”, e foi uma das passagens fortes do discurso de Mary Lou McDonald quando, em Fevereiro de 2018, foi confirmada como líder do Sinn Féin, substituindo o histórico Gerry Adams, que esteve ao leme dos nacionalistas irlandeses durante mais de 30 longos e tumultuosos anos.
Depois das legislativas de sábado, são cada vez menores as dúvidas sobre que sapatos McDonald tinha calçados para guiar o partido ao seu melhor resultado eleitoral de sempre na República da Irlanda: os seus e os de mais ninguém.
O Sinn Féin, de esquerda, conquistou o voto popular entre as primeiras escolhas dos eleitores – o sistema eleitoral irlandês permite a transferência de voto em caso de não-eleição dos candidatos colocados no topo das preferências de cada eleitor. Com 24,53%, passou de partido outsider da política irlandesa a força popular, pondo fim a quase um século de competição bipartidária pelo poder, entre Fianna Fáil e Fine Gael, (do actual primeiro-ministro, Leo Varadkar), ambos de centro-direita.
“A atitude mais democrática seria que eles viessem falar comigo e que abandonassem esta postura de dizer que o Sinn Féin deve ser colocado à margem”, reagiu McDonald esta segunda-feira, em declarações à RTÉ, sem esconder que vai tentar formar um governo de centro-esquerda.
A dimensão do feito alcançado pelo antigo braço político do Exército Republicano Irlandês (IRA) é colossal em todos os aspectos. Basta recordar que o Sinn Féin esteve banido da comunicação social e dos debates políticos até 1993, devido ao papel de muitos dos seus membros e dirigentes durante o conflito armado na Irlanda do Norte – contra os unionistas e ao lado do movimento republicano.
Entre 1987 e 2011, os nacionalistas andaram sempre abaixo de percentagens eleitorais de dois dígitos. Por causa dos fantasmas do terrorismo ultranacionalista e do foco quase total que o Sinn Féin deu à missão de reunificar a Irlanda, o partido foi sempre tratado pelas restantes forças políticas, e fatias importantes de eleitores, como pária, uma organização fora do circuito.
Até que McDonald tomou as rédeas. E o Sinn Féin mudou de rumo. “Uma espécie de revolução a partir das urnas”, foi assim que descreveu os resultados no domingo.
Perfil diferente
Mulher, oriunda de uma família de classe média dos subúrbios de Dublin e sem qualquer envolvimento directo no conflito irlandês, Mary Lou McDonald – hoje com 50 anos – teve um percurso muito diferente dos nomes grandes do Sinn Féin, como Gerry Adams ou Martin McGuinness.
Formou-se em Literatura Inglesa, tirou um mestrado em Estudos Europeus, foi investigadora política e social, e chegou a filiar-se no Fianna Fáil, o partido charneira da Irlanda durante várias décadas, uma vez que o Sinn Féin “não era uma organização muito visível no sítio onde vivia”.
“Demorei algum tempo até encontrar o meu caminho até lá”, contou, numa entrevista ao Irish Voice Newspaper.
Antes desta eleição, porém, McDonald já tinha feito história e uma ou outra revolução. Em 2004, foi a primeira candidata do Sinn Féin a ser eleita para o Parlamento Europeu e no final do mandato, cinco anos depois, chegou à vice-liderança do partido e entrou no Dáil Éireann, a câmara baixa do Parlamento irlandês.
Quando em 2018 foi escolhida para chefiar uma organização política com um passado problemático, num país conservador e com uma forte tradição de lideranças masculinas, McDonald não escondeu ao que vinha. Já era tempo de o Sinn Féin deixar o passado e começar a fazer política para o presente e o futuro.
“Não temos de concordar com o passado, não há uma narrativa histórica única. E não vale a pena voltar a lutar as guerras do passado. A guerra acabou”, anunciou, na altura.
“Com uma nova geração ao leme, o nosso trabalho é trazer formas inovadoras e modernas de fazer política. É altura de ideias frescas e ousadas. Queremos uma nova Irlanda, onde os direitos são garantidos, as culturas são respeitadas e a diversidade das nossas identidades é assumida”, defendeu.
Um partido social
Menos absorvida na questão da unificação, mas sem abdicar, nunca, dela – o partido quer um referendo sobre o tema nos próximos cinco anos –, McDonald apostou forte na componente social e laboral da mensagem do Sinn Féin, numa Irlanda sem grandes representantes à esquerda e que, à semelhança de outros Estados europeus, vive um período de cansaço do eleitorado com o establishment político.
Os eleitores alvo desta nova roupagem do partido são as gerações mais novas, para quem a descriminalização do aborto (e da blasfémia) ou a aprovação do casamento entre pessoas do mesmo sexo foram passos naturais, mas principalmente para quem a violência do passado já não está tão presente nas suas vidas, e cujas principais preocupações são os salários, a habitação, a educação, os serviços públicos e a protecção laboral.
Temas e sectores que sofreram com a crise financeira pós-2008 e que, apesar do crescimento económico irlandês, foram deixados para trás. Tal como a saúde, palco onde Mary Lou McDonald foi buscar votos aos mais idosos.
“Há um elemento que advém desta era pós-política que vivemos, particularmente junto dos jovens e daqueles que sentem que não beneficiaram do crescimento económico dos últimos anos”, explicava ao PÚBLICO, numa entrevista recente, a reitora da Faculdade de Artes, Humanidades e Ciências Sociais da Universidade de Dublin e professora de Ciência Política no Trinity College, Gail McElroy.
“Olham para o Sinn Féin como um partido mais redistributivo, que tem uma visão mais igualitária da sociedade e que até pode ter soluções para o problema da habitação ou do desemprego. Interessa-lhes o elemento socialista da mensagem do partido”, defendeu a académica.
Para além da votação histórica alcançada o resultado mais palpável da liderança de McDonald é ter conseguido transformar o Sinn Féin num partido mainstream. À base popular de apoio, os nacionalistas somaram uma aparência de organização política responsável. Ao ponto de o Fianna Fáil ter sugerido esta segunda-feira que, afinal e depois de repetitivas negas, está disposto a sentar-se à mesa para discutir a próxima solução de governo da República da Irlanda.