As tribos da comunicação
Se vivermos numa espécie de condomínio fechado de convicções, a democracia, no contexto contemporâneo, correrá riscos tremendos.
Assistimos a um fenómeno de fragmentação crescente do espaço público. A era que nos traz maiores possibilidades de partilhar ideias, expectativas, experiências, é também aquela em que a legitimidade das fontes, a transparência nos processos comunicacionais, o preconceito, minam de forma grave o exercício do encontro pessoal e social.
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Assistimos a um fenómeno de fragmentação crescente do espaço público. A era que nos traz maiores possibilidades de partilhar ideias, expectativas, experiências, é também aquela em que a legitimidade das fontes, a transparência nos processos comunicacionais, o preconceito, minam de forma grave o exercício do encontro pessoal e social.
Esta situação não significa a inexistência de comunidades de pertença, onde se trocam mensagens e há entendimentos. Mas corresponde ao crescente protagonismo ou mesmo supremacia de comunidades de interesses particulares sobre comunidades mais alargadas e assentes no interesse geral. Tomando como exemplo o debate sobre a crise climática, a própria definição de “crise climática” não é consensual. Por um lado, existe a verdade de painéis de cientistas; por outro, a dos negacionistas. Não há uma mesma linguagem, uma plataforma de negociação a partir de regras prévias aceites entre as partes. E sem negociação não pode haver compromisso.
Estas atitudes não remetem para um retrocesso nas conquistas do século XX por uma “aldeia global” – tecnologia mediática + interconexão + estabilidade institucional. Remetem antes para uma visão do século XXI em que os interesses particulares se sobrepõem ao interesse geral, alterando, significativamente, os pressupostos de base das sociedades democráticas.
Não existe aqui uma regressão, mas uma situação nova, complexa e dificilmente apreensível, sobre a qual se coloca a nossa condição de pensamento e ação – tecnologia mediática + globalização + crise das instituições.
A fragmentação do espaço público – que resulta da tribalização da comunicação – implica a identificação das “tribos” da comunicação – espaços confinados que substituem o espaço público. Espaços singulares, que se sobrepõem a uma ideia de pluralidade. É o caso de três tribos de conteúdos: a dos que os produzem, a dos que os detêm e a dos que os fruem (claro que esta forma de classificar é simplista a diversos títulos, mas útil, para aflorar a complexidade do tema – é assim que, apesar de vivermos a globalização, se remete para o contexto nacional sem aflorar, nomeadamente, o papel do Estado e a promiscuidade entre política, comentário político e economia).
Na tribo dos produtores de conteúdos há os seguintes clãs: comentadores políticos e desportivos; agências de comunicação; proprietários dos meios de comunicação; colunistas; jornalistas.
Na tribo dos detentores e agregadores de conteúdos, os partidos políticos, organizações confessionais, clubes desportivos, empresas, grupos de interesse.
Finalmente, na tribo dos fruidores de conteúdos, há os ambientalistas, os ideólogos de género, os consumistas, os seguidistas, os radicais.
Evidentemente, podem obter-se classificações que combinem membros das diferentes tribos e clãs. Assim, alguém pode ser, ao mesmo tempo, produtor, detentor e fruidor de conteúdos; comentador desportivo, político, radical.
Quando falamos da tribo dos produtores de conteúdos, falamos de uma tribo com uma influência direta sobre o espaço público. Há tendência, por parte dos receptores de conteúdos, para considerar como verdade o que lhes é transmitido por agentes de comunicação que reconhecem. Assim, comentadores, colunistas, jornalistas, têm uma influência significativa sobre o espaço mediático. Por vezes, o seu trabalho pode estar determinado por agendas escondidas – através do que se diz ou omite, para valorizar determinado partido, governo, grupo ou pessoa. Mas se o que for dito parecer transparente, dificilmente se perceberá ou poderá provar a diferença entre verdadeira notícia ou opinião e notícia ou opinião manipuladas. Esta situação remete para o problema estrutural de uma ética na comunicação, a precisar de reforço significativo.
Agências de comunicação e proprietários dos meios de comunicação têm uma influência indireta sobre o espaço público. Ou antes, têm, de forma indireta, uma influência direta sobre o espaço público. As agências de comunicação representam interesses de grandes empresas ou grupos. Ao contratar publicidade ou outros recursos, essenciais para a sobrevivência dos meios de comunicação social, têm um poder de influência editorial que não se pode ignorar. Como ele é utilizado e qual a sua dimensão é matéria dificilmente apurável. Os proprietários dos meios de comunicação têm posições dominantes no contexto de dada sociedade. E representam interesses. Até que ponto jornalistas e comentadores se sentem condicionados na produção de conteúdos em função da posição dos proprietários?
A tribo dos detentores e agregadores de conteúdos corresponde a entidades que, pela sua natureza política, económica ou social, polarizam um conjunto de perspetivas, convicções e documentos que têm influência determinante no espaço público. É assim com os grandes partidos políticos, clubes desportivos, Igreja, maçonarias, grupos ambientalistas e grandes agregadores de conteúdos. Os detentores e produtores de conteúdos não são agentes da verdade mas da “sua” verdade. Todavia, se esse particularismo se torna dominante no espaço mediático, existe distorção do mesmo – um interesse particular determina o espaço geral.
A tribo dos fruidores de conteúdos – a maioria numérica dos elementos no processo de comunicação – está hoje “sequestrada” pelos particularismos das perspetivas. Seja em assuntos políticos, desportivos, religiosos ou outros, partem de uma posição de não questionamento, associando-se ao que consideram ser os grupos mais fortes, onde se sentem protegidos. Muitos ambientalistas, ideólogos de género, consumistas, seguidistas, vêem o mundo de forma maniqueísta – os nossos e os outros. E os radicais levam ao extremo as suas posições, ao alimentar-se no processo mediático das ideias e propostas agressivas, afirmando comportamentos unilaterais e rejeitando qualquer forma de consenso.
A pulverização de posições e atitudes, seja dos que produzem, detêm ou agregam conteúdos, seja dos que, predominantemente, os consomem ou reproduzem, é a negação do espaço público, desse lugar onde, independentemente da diferença de posições, é possível trocar pontos de vista, mudar de opinião, aprender, consensualizar objetivos, defender o sentido do interesse geral da comunidade.
A fragmentação do espaço público, a tribalização da comunicação, é também a erosão de um sentido de bem comum e da construção social.
Não basta habitar dentro de uma mesma fronteira física, partilhar os mesmos recursos básicos – água, eletricidade, transportes, saúde, defesa – para se ser comunidade. São precisos valores comuns. Valores dinâmicos, em tensão, em circulação, em renovação, em consolidação mas gerados, discutidos, antagonizados, partilhados, num mesmo chão.
Se vivermos numa espécie de condomínio fechado de convicções, em que a recusa do outro, da diferença, da liberdade de pensamento e opinião, são consumidos pelos interesses e valores de grupo, vantagens abusivas, radicalismos e agressividade, a democracia, no contexto contemporâneo, correrá riscos tremendos.
Na Europa, desde as transformações e alargamento do espaço público que encontram referência na Revolução Francesa, apesar de muitos momentos de guerra e catástrofes, nunca se viu uma ameaça que se impõe de forma tão pacífica, insidiosa e inteligente: poderes que vencem sem os sinais convencionais das guerras, destruição das instituições liberais a favor de novas formas de totalitarismo.
Precisamos de ser, juntos, outra vez, povo, acolhendo as tribos e os clãs, mas sendo mais que a sua soma.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico