CPF levou 19 anos a participar à PJ desaparecimento de fotografia de Dorothea Lange
Já chegou à Procuradoria-Geral da República o relatório enviado pelo Ministério da Cultura sobre o desaparecimento de uma centena de obras da colecção de arte contemporânea do Estado.
Foram precisos 19 anos para que um relatório sobre o desaparecimento de um exemplar da fotografia de Dorothea Lange intitulada Migrant Mother fosse enviado à Polícia Judiciária (PJ). A fotografia desta norte-americana é uma das 112 obras da Colecção de Arte Contemporânea do Estado, conhecida como Colecção da Secretaria de Estado da Cultura (SEC), cujo paradeiro não foi possível localizar na actualização do inventário deste acervo com mais de mil peças realizado pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), um organismo do Ministério da Cultura.
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Foram precisos 19 anos para que um relatório sobre o desaparecimento de um exemplar da fotografia de Dorothea Lange intitulada Migrant Mother fosse enviado à Polícia Judiciária (PJ). A fotografia desta norte-americana é uma das 112 obras da Colecção de Arte Contemporânea do Estado, conhecida como Colecção da Secretaria de Estado da Cultura (SEC), cujo paradeiro não foi possível localizar na actualização do inventário deste acervo com mais de mil peças realizado pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), um organismo do Ministério da Cultura.
A obra comprada no final dos anos 80 pelo especialista em fotografia Jorge Calado – assim como outras cerca de 330 fotografias – foi deixada em depósito no Centro Português de Fotografia (CPF), em 1997, ano em que esta instituição foi criada no Porto.
Migrant Mother (1936), que não é uma prova vintage, foi impressa em 1981 por Arthur Rothstein, um fotógrafo que, tal como Dorothea Lange, trabalhou para a Farm Security Administration. Em Janeiro de 1998, foi avaliada em 4500 dólares, informa o CPF ao PÚBLICO, um valor muito inferior ao atribuído às provas de época.
O exemplar do CPF daquela que é considerada, muito provavelmente, a fotografia mais famosa do mundo – o Museum of Modern Art (MoMA) de Nova Iorque inaugura no domingo uma retrospectiva dedicada à fotógrafa –, foi emprestado em 1998 para uma exposição realizada no Centro Cultural de Belém (CCB), no âmbito do Festival dos 100 Dias, organizado pela Exposição Mundial de 1998 (Expo-98). Com comissariado de António Mega Ferreira e tendo Jorge Calado como consultor, a exposição Viagem ao Século XX propunha um olhar sobre a cultura visual do século passado.
Segundo o actual director do CPF, Bernardino Castro, a fotografia não regressou ao Porto, mas o relatório interno que dá conta do seu desaparecimento, realizado em 2000 por um técnico daquele centro, Silvestre Lacerda – hoje responsável pela Direcção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas, que tem a tutela do CPF no organograma do Ministério da Cultura (MC) –, só foi entregue à Polícia Judiciária a 24 de Junho de 2019.
O relatório do CPF diz que a obra não circulou com as cautelas necessárias: “[Houve] vários procedimentos com alguns erros, uns cometidos pela entidade organizadora da exposição Viagem ao Século XX, sendo de salientar a inexistência de qualquer controlo/registo de entrada e saída das peças das reservas do CCB; outros pela entidade transportadora R-Trans, como seja [a falta de] uma guia de remessa devidamente pormenorizada no caso da entrega efectuada a 2 de Junho de 1998; outros imputáveis ao Centro Português de Fotografia, nomeadamente pela inexistência de comunicação oficial de falta da entrega da imagem de Dorothea Lange, Migrant Mother, sem moldura, após terem sido recepcionadas todas as obras que foram objecto de empréstimo à Sociedade Parque Expo 98 SA.”
Este relatório, terminado a 3 de Agosto de 2000, conclui ainda que se “torna necessário participar o seu desaparecimento ao núcleo de investigação de obras de arte da Polícia Judiciária, a fim de se intensificarem as investigações tendentes à eventual recuperação da referida obra”.
Dirigido na altura por Teresa Siza, que esteve até 2007 à frente do CPF, o relatório acabou por não chegar à PJ. Contactada pelo PÚBLICO, a antiga directora escusou-se a explicar por que razão a queixa não foi apresentada. Igualmente contactado pelo PÚBLICO, Mega Ferreira disse não se lembrar de ver Migrant Mother na exposição, nem de ter sido informado do seu desaparecimento.
O caso da fotografia de Dorothea Lange – sem os pormenores agora relatados pelo PÚBLICO – é apenas um dos que vêm descritos no relatório da DGPC que o PÚBLICO pôde consultar durante três horas na quinta-feira nas instalações do MC, em Lisboa. E se a queixa acabou por seguir para a PJ no Verão do ano passado é porque o CPF começou a rever o seu inventário há já dois anos, com o objectivo de actualizar informação sobre doações, novas aquisições e identificar imagens mal catalogadas. Foi neste contexto que reapareceu o relatório da fotografia desaparecida de Lange, uma das três da colecção SEC que não é possível localizar no CPF e que para ali foram transferidas em 1997.
Relatório da DGPC já chegou à PGR
No relatório da DGPC, como o PÚBLICO noticiou na quinta-feira, há outras 15 fotografias desaparecidas, “possivelmente objecto de furto em 1993”. Ter-se-á igualmente perdido o rasto a cerca de metade das restantes 94 obras, entre pintura, escultura, desenho e muita gravura, logo em 1992, quando esta colecção criada em 1976 deixou de ser gerida pela Direcção-Geral da Acção Cultural. “O constante movimento de circulação de obras ao longo de mais de quatro décadas de existência da colecção nem sempre [foi] acompanhado do indispensável registo documental e em sede de inventário”, lê-se no documento, citado pela Lusa, que também consultou os dois dossiers com vários anexos no Palácio da Ajuda.
Nesta sexta-feira, a Procuradoria-Geral da República, através do seu gabinete de imprensa, confirmou ao PÚBLICO a chegada do relatório da DGPC, que “será, agora, objecto de análise”. A direcção-geral referia no relatório que já existiam “diligências em curso” relativamente a 25 das obras desaparecidas.
Várias páginas deste extenso relatório da DGPC são, como o PÚBLICO constatou, para descrever que depois de 1992 se inicia um ciclo de restruturações orgânicas no sector da Cultura “que, progressivamente, contribuiu para a diluição de competências relativas à gestão da colecção”. Logo em 2003 tenta-se chegar a “um inventário único” desta colecção que actualmente está distribuída por várias instituições, dentro e fora do país, a maior parte em regime de depósito de longa duração, destacando-se a Fundação de Serralves, no Porto, e a Câmara Municipal de Aveiro.
Nas primeiras páginas do relatório, a directora-geral do Património Cultural, Paula Silva, escreve que é preciso “considerar a necessidade de encontrar um local que possa funcionar como reservas da Colecção de Arte Contemporânea do Estado”, capaz de integrar as novas aquisições realizadas em 2019, no Museu do Chiado, no Museu de Serralves ou num pólo descentralizador.