Homens, estamos preparados para fazer perguntas?
Nos últimos 15 anos, em Portugal, houve 531 mulheres mortas e 618 vítimas de tentativa de homicídio — em última análise, o machismo mata. Devemos fazer as perguntas que possam ter o poder de nos colocar desconfortáveis sob a lupa dos comportamentos mecânicos.
De acordo com o relatório Time to care, recentemente divulgado pela Oxfam, as desigualdades no mundo, durante a última década, têm vindo a surpreender até os mais pessimistas. No decurso da economia sexista em que vivemos ainda é permitido aos 22 homens mais ricos do mundo acumularem um património superior ao de todas as mulheres que vivem no continente africano, e é possível também somarem-se 12,5 mil milhões de horas de trabalho não pago diariamente às mulheres que as acumulam com a maior carga nas tarefas domésticas.
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De acordo com o relatório Time to care, recentemente divulgado pela Oxfam, as desigualdades no mundo, durante a última década, têm vindo a surpreender até os mais pessimistas. No decurso da economia sexista em que vivemos ainda é permitido aos 22 homens mais ricos do mundo acumularem um património superior ao de todas as mulheres que vivem no continente africano, e é possível também somarem-se 12,5 mil milhões de horas de trabalho não pago diariamente às mulheres que as acumulam com a maior carga nas tarefas domésticas.
Em Portugal, escuta-se o silêncio ensurdecedor resultante da ausência de uma visão holística que sirva o diálogo sobre as várias questões de género, mas também de classe. Naturalmente, os sistemas opressivos derivados das crenças culturais inculcadas desde (idos?) tempos patriarcais alimentam dogmas que resultam na ausência de questionamento da maioria dos homens. Barreiras invisíveis para alguns que nunca ousam ser ultrapassadas se não chegarem sequer a ser questionadas, linhas imaginárias que acabam por traçar destinos com problemas prementes que são varridos para debaixo da mesa, ora por “respeitinho” ou por falta de coragem, e surgem apenas como prato principal quando surge um título suculento.
Nos últimos 15 anos, em Portugal, houve 531 mulheres mortas e 618 vítimas de tentativa de homicídio — em última análise, o machismo mata.
Os factos relembram-nos também que, entre os países desenvolvidos, desfraldamos a bandeira entre as nações mais desiguais no que às questões salariais entre géneros diz respeito. Não só as mulheres portuguesas recebem menos 22,1% em média que os homens, como constatamos também que estas têm menos tempo subjectivo de qualidade de vida. Para os que se insurgem contra as leis de quotas recordemos o sucesso dos resultados obtidos através da lei da paridade no Parlamento português.
“A sociedade portuguesa não é machista, até são elas que mandam lá em casa”, perpetuam, dentro da sua fortaleza, os chefes de família. Pois claro, todos sabemos quem domina o terreno das lides lá em casa, não é, meus amigos? Nós, os homens que até ousam cuidar da casa, dos filhos ou, num acto de loucura, arriscam lavar a loiça, somos logo alvo de um certo elogio polissémico. “Que belo marido arranjaste, Maria”. Talvez mais grave seja quando a própria mulher só se valoriza e realiza apenas com o papel de responsável da casa e da família. Sempre me questionei como não existe ainda a versão masculina da expressão “mulher-a-dias”. O machismo light expressa-se ainda no afecto que recorda o papel do homem e o seu dever de proteger a donzela indefesa, seja a pagar a conta, a ceder a passagem no elevador ou até mesmo a protegê-la do lado da estrada. Será ainda este o lugar da mulher portuguesa na sociedade contemporânea?
O estigma relativo ao movimento feminista nasce exactamente da preguiça intelectual de não sermos capazes de estimular o pensamento crítico. Se, como Madeleine Scudéry defendia, “a desconfiança é a mãe da segurança”, devemos aproveitar este movimento para fazermos as perguntas que possam ter o poder de nos colocar desconfortáveis sob a lupa dos comportamentos mecânicos. O termo feminista parece-me ser, actualmente, impopular e isso resulta da incapacidade de chegarmos ao outro e sentirmo-nos distantes no nosso lugar de conforto perante estas questões. Se compreendêssemos que as perguntas relacionadas com o privilégio masculino, que servem de partida para a discussão do feminismo, são desenhadas, pensadas e discutidas por mulheres que não odeiam homens, nem sequer querem ser iguais a eles, ganharíamos simpatia com esta causa fundamental nos dias de intolerância turbulenta que atravessamos. Como o mestre Agualusa aponta, “aquilo que é virtude numa cerveja, na mulher é defeito” e não há nestas mulheres feministas gota de frieza, nem tão pouco amargura.
Não serão as próprias mulheres as primeiras a ser ouvidas se queremos realmente descortinar se sofrem algum tipo de discriminação? Se nós, os homens, ainda assim não conseguirmos ouvi-las, podemos sempre assistir ao filme da Netflix Não sou um homem fácil, onde os papéis dos géneros são invertidos e ficamos logo a perceber as situações pelas quais as mulheres ainda são obrigadas a experienciar a masculinidade tóxica, seja na rua, no trabalho ou mesmo no intimo do quarto.
Aconselho ainda, de forma desavergonhada até, a ouvirem a conversa acerca do movimento feminista que tive com a Alexandra Santos, activista pelos direitos das mulheres e fundadora do Instituto da Mulher Negra em Portugal (Inmune), no segundo episódio do meu podcast Dedo no Ar. Aqui a premissa fundamental baseia-se na humildade, talvez pueril, de perguntar e ouvir o outro. Não será ainda este o melhor caminho a trilhar para não guardarmos ideias mas partilhá-las e, mais importante, conseguirmos criar laços de empatia humana?