Um erro de raciocínio, de ética e de política
A extrema-direita é um perigo para a democracia. A agenda antirracista é uma questão central para completar o nosso processo democrático. É fazer o esforço de pensar bem (dá trabalho), de o fazer com base em valores éticos, e de transformar o resultado em política.
Portugal tem vindo a viver o surgimento de dois fenómenos relativamente novos – ou, pelo menos, mais visíveis. Por um lado, o crescimento da influência de ideias e atores políticos de extrema-direita, com agendas nacionalistas, populistas, anti-parlamentares, racistas e sexistas. Por outro, o surgimento pleno do que nalguma academia e movimentos se designa como sujeito racializado, referindo pessoas e grupos negros, afrodescendentes e ciganos que ganham voz, representação e intervenção no espaço público.
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Portugal tem vindo a viver o surgimento de dois fenómenos relativamente novos – ou, pelo menos, mais visíveis. Por um lado, o crescimento da influência de ideias e atores políticos de extrema-direita, com agendas nacionalistas, populistas, anti-parlamentares, racistas e sexistas. Por outro, o surgimento pleno do que nalguma academia e movimentos se designa como sujeito racializado, referindo pessoas e grupos negros, afrodescendentes e ciganos que ganham voz, representação e intervenção no espaço público.
Muitas instituições, organizações, órgãos de comunicação, editorialistas e cronistas, e da direita à esquerda, têm vindo a estabelecer uma simetria entre estes fenómenos. Dizendo, nomeadamente, que constituem perigos semelhantes; que ambos são radicalismos ou extremismos; que “os extremos tocam-se”; ou que o segundo fenómeno acicata ou pode acicatar o primeiro, pelo que seria de algum modo condenável ou necessitando domesticação.
Esta simetria é falsa. Ela é, pois, um erro de raciocínio, mas é também um erro ético e um erro político. Ela é falsa porque os fenómenos em causa encontram-se numa relação assimétrica de poder. As ideias e propostas da extrema-direita correspondem às formas reacionárias de ver o mundo que têm uma história de centralidade e contra as quais as tradições mais progressistas – das simplesmente liberais às mais revolucionárias – lutaram, na evolução do processo democrático. Já as reivindicações dos movimentos antirracistas são-no duma minoria historicamente discriminada (do tráfico de pessoas escravizadas, à invenção da noção de raça como forma de hierarquizar populações, ao colonialismo, às desigualdades pós-coloniais e migratórias). A metáfora gráfica dos extremos que se tocam é em si mesma errada, e neste caso é também falsa, pois os dois fenómenos não são duas faces da mesma moeda, mas antes diferentes em substância e em natureza.
Aprendemos – ou devíamos ter aprendido – que a democracia não é a ditadura da maioria e que a sua qualidade se mede pela defesa e inclusão das minorias. O que o sujeito racializado (populações definidas pelo processo escravocrata e colonial da invenção das raças como forma de hierarquizar e criar desigualdade) demanda é a inclusão na cidadania; o ultrapassar, através de políticas, do racismo estrutural (emprego, residência, educação, saúde, justiça, política...); e o reconhecimento da indignidade histórica e contemporânea a que foram e são sujeitos, bem como a reparação, ainda que simbólica, por isso mesmo.
Nos movimentos, pensamento e política antirracistas o que temos é uma exigência de mais democracia e igualdade de oportunidades para mais gente. Isso implica, sim, também uma vasta crítica cultural da ideia de portugalidade, da sua História e das crenças sobre um suposto não-racismo. Como as exigências dos feminismos ou dos movimentos LGBT implicaram vastas críticas culturais das ideias de natureza, género, sexualidade, família, relações. Ou como os movimentos operários e sindicais implicaram uma crítica à naturalização da ideia de exploração.
Todos estes movimentos foram e são internamente diversos, quer do ponto de vista ideológico, quer estratégico e tático, quer mesmo dos seus atores e das suas atrizes. E todos têm lugar, da “civilizada” negociação liberal num parlamento à assumida provocação dos consensos através do choque estético ou da revolta. Desde que não recorram à violência (e não recorrem, antes são alvo dela...), nada neles é “extremista”, nada neles é “perigoso” ou “explosivo”. Eles constituem a vanguarda atual das exigências de alargamento da democracia e da cidadania, como antes outros o fizeram – dos trabalhadores e seus sindicatos, às mulheres e às pessoas gays, lésbicas ou trans. Só uma visão negacionista (do racismo), intelectualmente preguiçosa, ou eticamente deficiente e acomodada no conforto duma “paz social” de privilegiados (os que não passam pela experiência da exclusão em virtude de características suas) é que fala de “extremismos” no plural.
O verdadeiro perigo em Portugal vem da exploração populista de ideias tramontanas, que assentam em última instância no ódio. O antirracismo é, pelo contrário, um aliado precioso da democracia ameaçada, o mais recente herdeiro da “avenida da liberdade” do 25 de abril. A extrema-direita quer, no fundo, um Portugal imaginado como branco, quando muito com alguns negros “agradecidos” ou como peças museológicas dum colonialismo imaginado como humanista (como se tal fosse logicamente possível – outro erro de raciocínio); o antirracismo quer um Portugal de diversidades em igualdade cidadã e de oportunidades, não um Portugal imaginado como negro. Não há simetria, e só na extrema-direita há extremismo – o da exclusão.
A extrema-direita é um perigo para a democracia. A agenda antirracista é uma questão central para completar o nosso processo democrático. É fazer o esforço de pensar bem (dá trabalho), de o fazer com base em valores éticos, e de transformar o resultado em política.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico