Liquidação
Não deixa de ser pasmoso que, após uma discussão em que o tema da liberdade foi recorrente, o ultraje à liberdade de expressão estivesse a acontecer do outro lado da parede. Resta-me ponderar se fará sentido eu permanecer activa num órgão onde há quem considere indesejável o meu modo de pensar e opinar.
O dom que os seres humanos têm de falsificar a informação
reveste todas as formas possíveis, da mentira descarada ao silêncio.
George Steiner, Depois de Babel
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O dom que os seres humanos têm de falsificar a informação
reveste todas as formas possíveis, da mentira descarada ao silêncio.
George Steiner, Depois de Babel
Houvera espírito, não seria preciso responder à letra. Mas cada um sabe com que linhas se cose. Eis as minhas:
Somos feitos de palavras. São o nosso limite e ilimite. Ético. Estético. Político. Com elas nos exprimimos, atrás delas nos escondemos. São mentira reveladora, verdade tímida, meia verdade. Carregam a nossa impotência e embriagam-nos com o seu poder.
Apesar da omnipresença das imagens, as palavras passaram a ser o suporte mais forte da pós-verdade. A par das fake news, que inundam a cena política, o recurso ao fake knowledge, amiúde assente no name dropping, tem vindo a vulgarizar-se a ponto de haver quem defenda, com falsa candura, que tudo é o que é e o seu contrário. Só assim se explica que proibir pretensamente signifique permitir que alguém se coíba...
Se num texto acerca duma peça teatral se me afigurou relevante malhar no ferro frio da “cidade líquida”, conceito desviado do sentido original para legitimar a pertinência do seu exacto oposto, foi porque, a meu ver, a cultura de cidade merece melhor lhaneza do que os ínvios expedientes da publicidade travestida de poesia. Citar repetidas vezes Zygmunt Bauman e o seu conceito para enfatizar as qualidades dum estado líquido de cidade onde o autor só via defeitos é terrorismo intelectual.
Como alhures oportunamente recordei, a tentação de transformar conceitos nascidos da real inquietação de alguns sociólogos em armas de arremesso da retórica capitalista não data de ontem – veja-se a positivação da noção de “indústrias culturais” por um punhado de ideólogos sem escrúpulos e ávidos de formulações sonantes. Mas a tentação vira tendência e assume agora contornos de repugnante banalização, num contexto em que o relativismo absoluto se torna – sejamos líquidos... – água de silenciamento e fonte de paralisia.
Repare-se, por exemplo, na utilização pelos programadores dos Teatros Municipais do termo “ocupar” (1000 razões de ocupar o teatro) que, remetendo para factos ocorridos num passado assaz recente – a saber: a luta contra a privatização da gestão do Rivoli –, aposta no seu total esvaziamento (e, por extensão, do sentido da luta). Atente-se na reescrita do mundo que ocorre quando a propósito da expulsão de uma inquilina por meio dum incêndio, Tiago Guedes reprova o adjectivo “criminoso” usado para qualificar esse tipo de despejo, de que no Porto houve infeliz exemplo... As palavras desvendam ou camuflam: se Tiago Guedes censurou a Tiago Correia o desrespeito pela memória de quem fez com que o jovem encenador pudesse “ocupar” o palco do TCA, não estava ele, na verdade, a salientar a dívida que o liga a Paulo Cunha e Silva?
Ora, a memória do vereador, cujo prematuro falecimento a cidade naturalmente lamenta, não precisa de paladinos para ser defendida. Uma parte substancial da obra que nos deixou – reformulação da Feira do Livro, renascimento da Galeria Municipal, criação das bases do Cultura em Expansão... – prova quanto o seu contributo para arrancar o Porto à letargia foi notável. Onde a porca do fomento cultural torce o rabo é na utilização dos consumidores de cultura em pioneiros da transformação da cidade em tabuleiro de Monopoly, na exploração do trabalho voluntário ou precário para a viabilização de produtos artísticos de prestígio, no forjar de uma nova vaga de mitos e tradições entendidos como “marca Porto”, na promoção dos artistas menos desvalidos a vanguarda, involuntária, da gentrificação e correlativa expulsão das classes desfavorecidas da cidade...
Na manhã em que a equipa do TCA despoletou o “processo de censura” com vista à expurgação do meu texto sobre o espectáculo Turismo, eu encontrava-me in loco a participar numa reunião do Conselho Municipal de Cultura. Dado que nesse órgão há membros do staff do TCA e que se trata de gente que me conhece pessoalmente, não deixa de ser pasmoso que ninguém me tenha interpelado sobre o assunto. Não deixa de ser pasmoso que, após uma discussão em que o tema da liberdade foi recorrente, o ultraje à liberdade de expressão estivesse a acontecer do outro lado da parede. Resta-me ponderar se fará sentido eu permanecer activa num órgão onde há quem considere indesejável o meu modo de pensar e opinar.