Meninas yazidis vendidas como escravas sexuais criam coro para ultrapassar o trauma
As raparigas, entre os 15 e os 22 anos, dizem que o coro lhes proporciona amizade, cura e uma fuga das lembranças traumáticas que as atormentam.
Quando Rainas Elias tinha 14 anos, militantes do Estado Islâmico invadiram a sua terra natal, no Norte do Iraque, sequestraram-na e venderam-na a um combatente que a violou e torturou repetidamente antes de a vender a alguém ainda pior.
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Quando Rainas Elias tinha 14 anos, militantes do Estado Islâmico invadiram a sua terra natal, no Norte do Iraque, sequestraram-na e venderam-na a um combatente que a violou e torturou repetidamente antes de a vender a alguém ainda pior.
Agora, dois anos depois de ter conseguido fugir, Rainas está de visita ao Reino Unido com um coro criado por jovens que sobreviveram a múltiplas atrocidades do Estado Islâmico (ISIS, acrónimo em inglês para Daesh).
As raparigas, entre os 15 e os 22 anos, dizem que o coro lhes proporciona amizade, cura e uma fuga das lembranças traumáticas que as atormentam. “Sinto-me muito feliz com o coro. Isto ajudou-me muito psicologicamente”, disse Elias através de um intérprete depois de se apresentar no conservatório de música de Londres.
O coro cantou na Abadia de Westminster e apresentar-se-á às câmaras dos Comuns e dos Lordes, e ao príncipe Carlos, patrono de longa data da Fundação AMAR, criada para apoiar vítimas dos conflitos que têm assolado o território iraquiano, concentrando-se sobretudo na reabilitação de raparigas no Iraque.
Os cerca de 400 mil yazidis no Iraque constituem uma comunidade de minoria curda, cuja fé combina elementos do cristianismo, zoroastrismo e islamismo. Porém, o ISIS, que os considera adoradores de Satanás, matou e sequestrou milhares de yazidis, depois de desencadear um ataque, em 2014, ao coração das Montanhas Sinjar, no que as Nações Unidas dizem ter sido um genocídio. E, embora os extremistas do ISIS tenham sido expulsos há três anos, a maioria dos yazidis ainda vive em campos, com muito medo de voltar.
Tradição antiga
Num passeio de barco pelo rio Tamisa, esta semana, as meninas reuniram-se no convés para apreciar as vistas e tirar selfies. De óculos escuros e roupa casual, podiam confundir-se com qualquer grupo de adolescentes empolgadas com a sua primeira viagem ao estrangeiro — até que sacaram de um daf, instrumento de origens persas que se assemelha a uma pandeireta, e começaram a cantar.
Afinal, a música é extremamente importante quer na religião quer na cultura yazidi — mas nunca foi escrita nem gravada, apoiando-se na tradição oral. Por essa razão, o violinista Michael Bochmann tem trabalhado com músicos yazidi e com a AMAR para gravar a música antiga. O resultado foi entregue, esta terça-feira, por Bochmann e pelo coro à Biblioteca Bodleiana da Universidade de Oxford, no âmbito de um projecto que passa por proteger a música yazidi, ensinando-a a centenas de jovens.
Embora a música yazidi seja tradicionalmente assumida por homens, quase metade dos que estão hoje a aprender a interpretá-la são meninas e mulheres, para as quais, segundo Bochmann, o coro tem tido um efeito transformador. “É extraordinário como a autoconfiança [das participantes] cresceu”, disse Bochmann à Thomson Reuters Foundation. “O melhor da música é que ela faz com que se viva no aqui e no agora. Mais do que qualquer outra forma de arte, [a música] pode fazer alguém feliz no momento presente.”
Justiça e protecção
Para a performance, as raparigas usaram longos vestidos, em branco e lilás, amarrados com faixas alaranjadas e acessórios para o cabelo em preto e dourado. E, enquanto dançavam, com os seus lenços de lantejoulas, era difícil imaginar os horrores que tinham sofrido tão recentemente.
Cerca de metade dos 14 membros do coro já foi escravizada, embora a maioria prefira não contar as suas histórias. Excepto Rainas, que parecia interessada em falar. “Não tenho a certeza se vou recuperar do que vivi”, desabafou a adolescente, que passou três anos em cativeiro, tendo sido vendida três vezes a homens diferentes depois de ter sido levada para a Síria. O segundo homem, contou, um cidadão saudita, morreu quando ela estava grávida. Ela foi, então, vendida com o filho a um marroquino que a violou “como um monstro”, às vezes seis vezes por dia.
Rainas engravidou duas vezes, tendo sofrido abortos espontâneos ambas as vezes, atribuindo o primeiro aborto em parte à tortura de que foi alvo.
Em 2017, a família da jovem conseguiu o montante de 12 mil dólares (cerca de dez mil euros) pedido pela sua libertação — mas, mesmo assim, o ISIS manteve-a em cativeiro.
Hoje, Rainas Elias, com 19 anos, aprecia a liberdade, mas não esquece todos os que ainda estão desaparecidos, como a sua irmã e os seus dois irmãos, cujos destinos se mantêm desconhecidos tal como o de milhares de outros yazidis. E, por isso, apela à comunidade internacional ajuda para resgatar os yazidis mantidos em cativeiro e para conseguir que o seu povo não volte a ser perseguido. “Sofri muito. Espero que a comunidade internacional nos ajude a capturar estes homens e a prendê-los.”
Até porque, explica a jovem, “o perigo ainda persiste”, mesmo após a derrota do ISIS. “A única coisa que nos pode salvar é o compromisso mundial de nos proteger”, refere, ao mesmo tempo que confessa: “O que vivi, a tortura e a violação, não posso esquecer. É claro que ainda tenho medo.”