Código dos Contratos Públicos
Este é o resultado da interpretação direta do CCP, onde um lapso inconsequente do projetista pode resultar, por um lado, no pagamento de uma indeminização por um prejuízo que não existiu e, por outro, no enriquecimento sem justa causa do dono de obra.
A ausência de contributo de técnicos com experiência prática na elaboração de uma determinada legislação redunda na redação de leis pouco claras, passíveis de interpretações dissonantes da realidade. Como consequência, acumulam-se processos em tribunal, implicando a perda de tempo e dinheiro dos envolvidos e sobrecarregando o sistema judicial.
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A ausência de contributo de técnicos com experiência prática na elaboração de uma determinada legislação redunda na redação de leis pouco claras, passíveis de interpretações dissonantes da realidade. Como consequência, acumulam-se processos em tribunal, implicando a perda de tempo e dinheiro dos envolvidos e sobrecarregando o sistema judicial.
O Código dos Contratos Públicos (CCP), que regula também as empreitadas de construção, parece ser um desses exemplos. Para evidenciar uma das suas inconsistências, e ainda que o Código se aplique apenas à contratação pública, vamos por hipótese aplicá-lo a uma contratação privada.
Imagine que quer construir uma moradia. Contrata uma equipa de projetistas que, face à conjuntura do mercado, aceita fazer esse projeto por 5 mil Euros. Esse valor terá de cobrir os honorários de, pelo menos, três técnicos diferentes que irão elaborar os projetos de arquitetura, de fundações e estruturas, de águas e esgotos, de energia elétrica, de ITED, de condicionamento acústico, de térmica e de gás. Depois, com o projeto completo e devidamente licenciado, procura uma empresa de construção e contrata a obra por 250 mil Euros.
Durante a empreitada verifica-se que o projetista cometeu um erro e não incluiu uma última alteração ao projeto no mapa de quantidades e trabalhos. A fachada, inicialmente prevista em tijolo maciço com uma pequena área capeada a pedra, passou, a pedido do dono de obra, ao inverso: capeada a pedra, com uma área em tijolo maciço. Considerando que o custo unitário atribuído pelo empreiteiro para a execução de cada um dos dois revestimentos é idêntico, a moradia terá o mesmo custo independentemente do tipo e extensão dos acabamentos exteriores. Mas, apesar de no projeto se encontrar a solução final perfeitamente clara, o projetista não atualizou o mapa de quantidades e o orçamento tem 10 mil Euros destinados a tijolo maciço que deveriam estar atribuídos ao capeamento a pedra.
O CCP interpreta essa situação da seguinte forma: 1) o valor atribuído para a execução da moradia deve ser expurgado das quantidades de trabalho que se encontram contabilizadas em excesso (referentes ao revestimento a tijolo maciço), passando a 240 mil Euros; 2) para a conclusão da moradia terão de ser acrescentados os trabalhos em falta (referentes ao capeamento a pedra) no valor de 10 mil Euros.
Vamos supor que o empreiteiro apenas detetou esse lapso depois de 60 dias após a consignação. Nesse caso, o CCP obriga-o a pagar-lhe do seu bolso 50% dos acabamentos exteriores em “falta”. Ou seja, o empreiteiro irá oferecer-lhe 5 mil Euros pelo único e simples motivo de não se ter debruçado com profundidade suficiente sobre essa parte da obra, enquanto andou a fazer desmatações, movimentos de terra e iniciou a estrutura em betão armado.
No fim da construção da moradia, o leitor, como dono de obra, vê-se obrigado a dar cumprimento a mais uma disposição do CCP e, embora possa reconhecer que o lapso do projetista em nada o prejudicou e até lhe reconheça todo o empenho e esteja plenamente satisfeito com o resultado, terá de o obrigar a pagar-lhe os restantes 5 mil Euros em “falta” para a conclusão dos acabamentos exteriores da moradia.
O empreiteiro, embora concorde ser um absurdo obrigar o projetista a pagar os referidos trabalhos, não deixa de considerar que é igualmente um absurdo ser ele a pagá-los. Vê-se assim obrigado a tirar partido de outra alínea do mesmo artigo do CCP, reclamando ao projetista a parte que inexplicavelmente foi obrigado a assumir durante a execução da obra.
No final, a moradia ficou exatamente como pretendia e teve o custo de construção inicialmente previsto de 250 mil Euros mas, por imposição da aplicação do CCP, pagou apenas 240 mil Euros pela mesma, sendo os restantes 10 mil Euros oferecidos pelo projetista.
Faz algum sentido? Este é o resultado da interpretação direta do CCP, onde um lapso inconsequente do projetista pode resultar, por um lado, no pagamento de uma indeminização por um prejuízo que não existiu e, por outro, no enriquecimento sem justa causa do dono de obra. A par do caso evidenciado, outras inconsistências têm sido apontadas ao CCP, revelando um distanciamento da realidade na matéria que pretende regular.
Não será imperioso que as leis sejam claras, especialmente num país onde os processos se arrastam nos tribunais? Não podemos ter um quadro legal dissonante da realidade que facilmente lesa os que rege. É urgente rever, uma vez mais, o CCP com uma maior participação de profissionais experientes no setor.
Os autores escrevem segundo o novo Acordo Ortográfico