Gandhi na Índia de Modi

Esta não é a Índia com que Gandhi sonhou. O governo de Modi rejeita os valores do pluralismo, sincretismo e tolerância endossados por Gandhi.

No dia 19 de dezembro de 2019, António Costa, primeiro-ministro português, discursou na cerimónia de 150.º aniversário de Gandhi. Durante a visita oficial, o homólogo português de Narendra Modi anunciou o lançamento do Prémio Gandhi de Educação para a Cidadania, “inspirado nos pensamentos e afirmações” do líder independentista indiano. Talvez ele não soubesse que Narendra Modi, com quem se reuniu à data, opõe-se a todos os ideais que Gandhi representa. Mais uma evidência disso é o convite que fez ao Presidente Jair Bolsonaro, político de extrema-direita, para ser convidado de honra nas comemorações do Dia da República, a 26 de janeiro de 2020.

Os ideais de Gandhi – a paz, a harmonia comunitária e a não-violência – são mais relevantes hoje do que nunca, quando escalam a violência estatal contra minorias religiosas, o ódio, o autoritarismo e o nacionalismo hindu. No encalço desse movimento, os nacionalistas procuram equacionar nacionalidade e religião – ser hindu e ser indiano – e propagandeiam a superioridade hindu sobre outras religiões.

Hoje, se não tivesse sido assassinado por um extremista hindu em 1947, Mahatma Gandhi poderia morrer por protestar contra o fundamentalismo hindu do governo de Narendra Modi. Reverenciado mundialmente pela sua defesa da liberdade, o “pai da Índia” sempre sofreu oposição do nacionalismo hindu, para o qual a cidadania inclusiva (independente da casta, da crença ou da religião), o pluralismo religioso e a irmandade entre hindus e muçulmanos não são parte da Índia pós-colonial. Shakun Pandey, líder da organização fundamentalista Hindu Mahasabha, atirou com uma arma de brinquedo contra uma efígie de Gandhi na data de seu aniversário de morte; em outro incidente, Pragya Thakur, líder do partido do governo, chamou de “patriota” o assassino de Gandhi.

Na Índia de hoje, protestos pacíficos são respondidos com violência estatal. Yogi Adityanath, ministro de Estado e militante nacionalista, jurou vingança contra manifestantes que se opusessem ao Citizenship Bill e o National Register of Citizens. Essas mudanças na legislação procuram declarar imigrantes ilegais milhões de pessoas muçulmanas. Na tentativa de abafar os protestos, o governo estabelece leis draconianas, próprias da era colonial. Narendra Modi e seu governo foram criticados pelos media internacionais por alimentarem divisões no interior da Índia, tendo inclusive o Parlamento Europeu condenado suas ações.

Em consequência da violência contra manifestantes e à clara ameaça contra a liberdade civil representada pelas ações do atual governo, a Índia caiu dez posições no Índice de Democracia, ocupando o 51.º lugar entre 167 países avaliados.

Esta não é a Índia com que Gandhi sonhou – uma Índia aonde a liberdade de expressão encontra-se sob ameaça de criminalização, o governo persegue minorias religiosas, as visões dissidentes não têm a tolerância de uma maioria hindu. Fosse vivo, Gandhi lutaria com unhas e dentes contra a hegemonia do nacionalismo hindu, protestaria contra uma lei da cidadania antimuçulmana, e certamente seria chamado de “antinacional” pelos nacionalistas hindus.

Curiosamente, a Índia é conhecida pelos princípios da não-violência e da desobediência civil endossados por Mahatma Gandhi, além de ser reconhecida pela sua tremenda diversidade cultural. Estes foram os princípios exercidos contra o domínio colonial, os princípios através dos quais se conquistou a independência indiana em 1947. O governo de Modi rejeita os valores do pluralismo, sincretismo e tolerância endossados por Gandhi. Diferente do nacionalismo hindu, o nacionalismo de Gandhi buscava uma Índia tolerante e unificada, inclusiva de todas as comunidades.

Contudo, é certo que o atual governo subestima o poder de protestos pacíficos e desconsidera as ideias gandhianas de resistência não-violenta e desobediência civil. Gandhi mobilizou as massas indianas, realizou enormes movimentos nacionais, tais como o Movimento de Não-Cooperação (1920-22), o Movimento de Desobediência Civil (1930), a Marcha do Sal e o Movimento Quit Índia (1942). A filosofia da resistência civil não-violenta de Gandhi influenciou outros movimentos civis ao redor do globo.

Gandhi é o criador de uma filosofia de não-violência e não-cooperação que ele chamou de Santyagraha – “a persistência da verdade.” Martin Luther King inspirou-se nela em sua luta no Movimento pelos Direitos Civis, como também Dalai Lama. O ativismo de Gandhi foi formado sob a influência do hinduísmo e jainismo – religiosos indianas. Os ideais de simplicidade, dever e não-violência estão presentes no texto hindu “Bhagavad Gita”, que serviu como um enquadramento religioso para a luta de Gandhi. Os seus textos exortam seus leitores não apenas a evitar a violência física, como também a mental. No entanto, na Índia independente, a violência está incorporada no próprio funcionamento do Estado – um sistema opressivo, legado colonial – e prossegue sendo um método comum de administração das populações; violência de Estado é exercida contra manifestações pacíficas e justificada pelos líderes do governo, seus apoiadores e os media pró-governo.

É curioso que Narendra Modi teça eulogias a Gandhi e à diversidade cultural indiana em seus discursos no exterior, mas nos assuntos domésticos seu governo tenha se ocupado em desmantelar instituições democráticas, aterrorizar minorias religiosas e ameaçar intelectuais e ativistas dos direitos humanos. Os convites feitos a líderes da extrema-direita, como Rodrigo Duterte e Jair Bolsonaro, também são testemunhos de como Modi apoia ideologias extremistas completamente contrárias à filosofia de não-violência, amor e tolerância de Mahatma Gandhi.

Uma Índia ainda dividida por castas, religiões e línguas, desintegra-se na ausência de princípios inclusivos e pluralismo religioso – se essa desintegração não é geográfica, é ao menos essencial. Diante do fascismo hindu, os pontos fortes da Índia, a sua vibrante sociedade civil e sua diversidade cultural, estão ameaçados. No entanto, a comunidade internacional começa a reconhecer as ameaças à democracia hoje presentes no cenário político indiano. Depois de seis anos sob o governo do partido nacionalista hindu Bhartiya Janata, a Índia transforma-se gradualmente num estado hindu, perdendo o sincretismo, a não-violência e a tolerância, valores indianos nucleares que Gandhi professou e praticou – ideias que, hoje, poderiam salvar a declinante democracia indiana.

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No dia 19 de dezembro de 2019, António Costa, primeiro-ministro português, discursou na cerimónia de 150.º aniversário de Gandhi. Durante a visita oficial, o homólogo português de Narendra Modi anunciou o lançamento do Prémio Gandhi de Educação para a Cidadania, “inspirado nos pensamentos e afirmações” do líder independentista indiano. Talvez ele não soubesse que Narendra Modi, com quem se reuniu à data, opõe-se a todos os ideais que Gandhi representa. Mais uma evidência disso é o convite que fez ao Presidente Jair Bolsonaro, político de extrema-direita, para ser convidado de honra nas comemorações do Dia da República, a 26 de janeiro de 2020.

Os ideais de Gandhi – a paz, a harmonia comunitária e a não-violência – são mais relevantes hoje do que nunca, quando escalam a violência estatal contra minorias religiosas, o ódio, o autoritarismo e o nacionalismo hindu. No encalço desse movimento, os nacionalistas procuram equacionar nacionalidade e religião – ser hindu e ser indiano – e propagandeiam a superioridade hindu sobre outras religiões.

Hoje, se não tivesse sido assassinado por um extremista hindu em 1947, Mahatma Gandhi poderia morrer por protestar contra o fundamentalismo hindu do governo de Narendra Modi. Reverenciado mundialmente pela sua defesa da liberdade, o “pai da Índia” sempre sofreu oposição do nacionalismo hindu, para o qual a cidadania inclusiva (independente da casta, da crença ou da religião), o pluralismo religioso e a irmandade entre hindus e muçulmanos não são parte da Índia pós-colonial. Shakun Pandey, líder da organização fundamentalista Hindu Mahasabha, atirou com uma arma de brinquedo contra uma efígie de Gandhi na data de seu aniversário de morte; em outro incidente, Pragya Thakur, líder do partido do governo, chamou de “patriota” o assassino de Gandhi.

Na Índia de hoje, protestos pacíficos são respondidos com violência estatal. Yogi Adityanath, ministro de Estado e militante nacionalista, jurou vingança contra manifestantes que se opusessem ao Citizenship Bill e o National Register of Citizens. Essas mudanças na legislação procuram declarar imigrantes ilegais milhões de pessoas muçulmanas. Na tentativa de abafar os protestos, o governo estabelece leis draconianas, próprias da era colonial. Narendra Modi e seu governo foram criticados pelos media internacionais por alimentarem divisões no interior da Índia, tendo inclusive o Parlamento Europeu condenado suas ações.

Em consequência da violência contra manifestantes e à clara ameaça contra a liberdade civil representada pelas ações do atual governo, a Índia caiu dez posições no Índice de Democracia, ocupando o 51.º lugar entre 167 países avaliados.

Esta não é a Índia com que Gandhi sonhou – uma Índia aonde a liberdade de expressão encontra-se sob ameaça de criminalização, o governo persegue minorias religiosas, as visões dissidentes não têm a tolerância de uma maioria hindu. Fosse vivo, Gandhi lutaria com unhas e dentes contra a hegemonia do nacionalismo hindu, protestaria contra uma lei da cidadania antimuçulmana, e certamente seria chamado de “antinacional” pelos nacionalistas hindus.

Curiosamente, a Índia é conhecida pelos princípios da não-violência e da desobediência civil endossados por Mahatma Gandhi, além de ser reconhecida pela sua tremenda diversidade cultural. Estes foram os princípios exercidos contra o domínio colonial, os princípios através dos quais se conquistou a independência indiana em 1947. O governo de Modi rejeita os valores do pluralismo, sincretismo e tolerância endossados por Gandhi. Diferente do nacionalismo hindu, o nacionalismo de Gandhi buscava uma Índia tolerante e unificada, inclusiva de todas as comunidades.

Contudo, é certo que o atual governo subestima o poder de protestos pacíficos e desconsidera as ideias gandhianas de resistência não-violenta e desobediência civil. Gandhi mobilizou as massas indianas, realizou enormes movimentos nacionais, tais como o Movimento de Não-Cooperação (1920-22), o Movimento de Desobediência Civil (1930), a Marcha do Sal e o Movimento Quit Índia (1942). A filosofia da resistência civil não-violenta de Gandhi influenciou outros movimentos civis ao redor do globo.

Gandhi é o criador de uma filosofia de não-violência e não-cooperação que ele chamou de Santyagraha – “a persistência da verdade.” Martin Luther King inspirou-se nela em sua luta no Movimento pelos Direitos Civis, como também Dalai Lama. O ativismo de Gandhi foi formado sob a influência do hinduísmo e jainismo – religiosos indianas. Os ideais de simplicidade, dever e não-violência estão presentes no texto hindu “Bhagavad Gita”, que serviu como um enquadramento religioso para a luta de Gandhi. Os seus textos exortam seus leitores não apenas a evitar a violência física, como também a mental. No entanto, na Índia independente, a violência está incorporada no próprio funcionamento do Estado – um sistema opressivo, legado colonial – e prossegue sendo um método comum de administração das populações; violência de Estado é exercida contra manifestações pacíficas e justificada pelos líderes do governo, seus apoiadores e os media pró-governo.

É curioso que Narendra Modi teça eulogias a Gandhi e à diversidade cultural indiana em seus discursos no exterior, mas nos assuntos domésticos seu governo tenha se ocupado em desmantelar instituições democráticas, aterrorizar minorias religiosas e ameaçar intelectuais e ativistas dos direitos humanos. Os convites feitos a líderes da extrema-direita, como Rodrigo Duterte e Jair Bolsonaro, também são testemunhos de como Modi apoia ideologias extremistas completamente contrárias à filosofia de não-violência, amor e tolerância de Mahatma Gandhi.

Uma Índia ainda dividida por castas, religiões e línguas, desintegra-se na ausência de princípios inclusivos e pluralismo religioso – se essa desintegração não é geográfica, é ao menos essencial. Diante do fascismo hindu, os pontos fortes da Índia, a sua vibrante sociedade civil e sua diversidade cultural, estão ameaçados. No entanto, a comunidade internacional começa a reconhecer as ameaças à democracia hoje presentes no cenário político indiano. Depois de seis anos sob o governo do partido nacionalista hindu Bhartiya Janata, a Índia transforma-se gradualmente num estado hindu, perdendo o sincretismo, a não-violência e a tolerância, valores indianos nucleares que Gandhi professou e praticou – ideias que, hoje, poderiam salvar a declinante democracia indiana.


O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico