Dos “comportamentos desviantes” à fúria mapuche
“Desde 2017, o Governo [do Ruanda], adoptou um novo quadro legal e políticas ostensivamente criadas para reintegrar pessoas acusadas de ‘comportamentos desviantes’ (…) como parte da sua estratégia para ‘erradicar a violência’. Mas esta legislação apenas regulamentou e consagrou a detenção arbitrária (…).” Human Rights Watch
O centro de abuso de menores
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O centro de abuso de menores
É costume olhar para o Ruanda como exemplo de sucesso em África. Um quarto de século depois de um genocídio que matou entre 500 mil e um milhão de pessoas (70% da população tutsi), o país recuperou das suas feridas étnicas, a política fiscal do Governo permitiu melhorar a educação e as infra-estruturas e atrair investimento estrangeiro. Mas essa necessidade de controlar a normalização tem o seu lado negro: Paul Kagame é Presidente desde 2000 e não conta sair tão cedo e, como diz a Human Rights Watch (HRW), para evitar um novo genocídio, a política de intolerância implementada a partir do poder impede a dissensão e o surgimento de outros partidos e líderes políticos. Esta semana, a mesma HRW voltou a denunciar os abusos e as torturas no Centro de Trânsito de Gikondo, para onde a polícia leva todas as crianças de rua que apanha em Kigali. Apesar de o Ruanda ser um país pobre, sobretudo agrário, o Governo quer as artérias da capital limpas de mendigos, prostitutas e crianças de rua. Gikondo é o armazém dos “comportamentos desviantes”, centro de abusos para os mais novos, alvos de violência constante: “Em Gikondo, batem-nos com bastões na cabeça e na sola dos pés. Dizem-nos que se continuarmos a viver nas ruas, vão continuar a bater-nos”, contou um jovem de 15 anos.
Capacetes azuis (muito) escuros
Violações dos direitos humanos na RD Congo, corrupção e exploração na Bósnia, abusos sexuais de capacetes azuis em vários países onde a organização tem ou teve missões humanitárias. As Nações Unidas transformaram-se numa multinacional de abusos, que prefere silenciar os denunciadores a reconhecer a culpa, indemnizar as vítimas e introduzir reformas que tornem mais difícil a repetição desses crimes. Anders Kompass, diplomata de carreira com 20 anos de trabalho na ONU, sentiu o peso da organização a cair-lhe em cima quando decidiu, em 2014, denunciar os abusos sexuais cometidos por soldados da missão da ONU na República Centro Africana (RCA). Em vez de recompensado, Kompass foi suspenso, acusado de má conduta, e convidado a demitir-se. “Agi eticamente quando denunciei o abuso sexual de crianças na RCA às autoridades judiciais externas. Dei-lhes os pormenores que precisavam, no meio de guerra civil, para rapidamente encontrar e proteger as vítimas, agarrar os autores e conseguir informação dos investigadores da ONU. E, ainda assim, fui convidado a demitir-me. Suspenderam-me por me ter recusado a fazê-lo e fui exposto publicamente durante meses enquanto estava a ser investigado por divulgação imprópria de informação confidencial”, afirmou esta semana à TRT World.
“Não falem de repressão”
Na batalha de palavras, o Governo francês cedeu. Esta semana o ministro do Interior, Cristophe Castaner anunciou a proibição de utilização das granadas explosivas de gás lacrimogéneo que foram as causadoras de muitos ferimentos durante a repressão das manifestações dos Coletes Amarelos. David Dufresne, jornalista especializado em violência policial, escreveu um romance realista sobre os acontecimentos, Dernière sommation (Último aviso). Esta semana, em entrevista à France Info, dizia que a polícia francesa “feriu em poucos meses tantos manifestantes como em 20 anos”. O livro está entre o ensaio e o documento, emotivo, encolerizado (“responder à urgência da urgência, escrever enquanto estava a acontecer, como uma biografia da actualidade”), e partiu, segundo Dufresne, de uma frase do Presidente francês, Emmanuel Macron: “Não falem de repressão e violência policial, essas palavras são inaceitáveis num Estado de direito”. Para o escritor, começava aí a “batalha das palavras” e era preciso evitar que “a história fosse deixada na mão dos vencedores, dos ricos, dos dominadores”. Nessa guerra contra “a manutenção da ordem à francesa”, as GLI-F4 passam à história depois de imporem a sua ordem violenta. Agora falta proibir as LBD-40, que disparam bolas de borracha capazes de cegar.
A ditadura não partiu, vestiu fato e gravata
Os poemas de David Aniñir não são poemas, mas pwemas (porque os versos se misturam com o sonho curandeiro mapuche, o pewma), que usa como uma arma contra a burguesia, contra a ditadura disfarçada de fato e gravata e democracia: “Pai nosso que estás no chão/Insultado seja o teu nome/Vinga-nos dos que vivem nas colinas de La Reina/e em Las Condes/Cumpra-se senhor a tua vontade/Assim como fazem os fascistas na terra/– a nossa terra –/E os bófias na delegacia.” Cresceu nos arredores de Santiago do Chile (até cunhou o termo “mapurbe” para definir os indígenas mapuches nascidos por entre o cimento urbano) com aguda consciência política. Organiza leituras, performances, grita versos para o megafone em frente à La Moneda, onde morreu Salvador Allende e agora está o milionário Sebastián Piñera. Daí que não estranhasse o envolvimento nas ondas de protestos contra o Governo chileno – ficou ferido por uma bola disparada pelas forças antimotim numa manifestação a 23 de Outubro. Em entrevista recente ao site El Desconcierto, diz que pertence à classe trabalhadora e que é nas “profissões precárias, próprias da mapuchicidade” que vai buscar a sua linguagem: “Os grandes livros estão aí, nessa gente, mais que nas oficinas literárias e na formação académica mais acabada”.