Homens e mulheres: Uma desigualdade silenciosa
No seu primeiro livro, Ganhar asas e voar, Melinda Gates partilha o que aprendeu com pessoas “extraordinárias” que conheceu e os desafios que enfrentou nas quase duas décadas à frente da Fundação Bill & Melinda Gates. Ao longo desse percurso, algo se tornou evidente: se queremos elevar a sociedade, não podemos rebaixar as mulheres. O livro chega às bancas pela mão da Porto Editora, nesta quinta-feira.
A desigualdade no trabalho não remunerado
A verdade faz-nos mais fortes
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A desigualdade no trabalho não remunerado
Para as mulheres que passam todo o seu tempo a fazer trabalho não remunerado, as tarefas diárias extinguem os sonhos de uma vida. O que quero dizer quando falo em trabalho não remunerado? Refiro-me ao trabalho que é feito em casa, como cuidar dos filhos ou prestar outros tipos de cuidados, cozinhar, limpar, ir às compras e fazer recados, por um membro da família que não recebe nada por isso. Em muitos países, quando as comunidades não têm eletricidade ou água corrente, o trabalho não remunerado também abrange as tarefas de recolher água e lenha, atribuídas às mulheres e raparigas.
É a realidade de milhões de mulheres, especialmente nos países mais pobres, onde têm de se encarregar da maior parte do trabalho não remunerado que a gestão de uma família implica. Em média, as mulheres de todo o mundo passam mais do dobro das horas que os homens passam a cumprir tarefas não remuneradas, apesar de o grau de disparidade variar muito. Na Índia, as mulheres passam seis horas por dia a cumprir tarefas não remuneradas, enquanto os homens passam menos de uma. Nos EUA, em média, as mulheres passam mais de quatro horas por dia ocupadas com trabalho não remunerado, enquanto os homens só passam, em média, duas e meia. Na Noruega, as mulheres passam três horas e meia por dia a fazer trabalho não remunerado, enquanto os homens passam cerca de três. Não existe um só país onde não exista uma discrepância. Isso significa que, em média, as mulheres passam mais sete anos a fazer trabalho não remunerado do que os homens, durante uma vida inteira. É mais ou menos o tempo que se leva a fazer uma licenciatura pré-Bolonha e um mestrado.
Sempre que têm a possibilidade de passar menos tempo a cumprir tarefas não remuneradas, as mulheres passam mais tempo a fazer trabalho remunerado. Aliás, a redução de cinco para três horas de trabalho não remunerado das mulheres leva a um acréscimo de cerca de 20% na taxa de participação feminina na força de trabalho. É um pormenor de uma importância fulcral, porque é o trabalho pago que eleva as mulheres ao nível dos homens e lhes dá força e independência. É por isso que o desequilíbrio de género no trabalho não remunerado é tão fundamental: o trabalho não remunerado que a mulher cumpre em casa impede-a de se dedicar às atividades que podem fazê-la progredir — estudar mais, ter um rendimento mais elevado, encontrar-se com outras mulheres e tornar-se politicamente ativa. A desigualdade no trabalho não remunerado impede a mulher de fazer o seu caminho para ganhar asas e voar.
É claro que existem categorias de trabalho não remunerado que podem imbuir a vida de sentido, como cuidar de familiares, mas dizer que todos os envolvidos — os que prestam e os que recebem os cuidados — têm a ganhar com a partilha desse dever não lhe retira significado e valor.
Em janeiro de 2014, fui com a minha filha Jenn passar uma noite com uma família na Tanzânia — em Mbuyuni, uma aldeia mesmo a leste de Arusha, perto do Monte Kilimanjaro. Era a primeira vez que fazia uma visita que implicava dormir em casa de uma família, e esperava que a experiência me desse uma ideia um pouco mais clara de como as pessoas vivem, algo que nunca poderia aprender através dos livros e relatórios que lia nem das conversas francas que tinha com as mulheres que conhecia nas minhas viagens. (...)
Mais do que influenciar aquilo que os miúdos decidam vir a fazer, espero que este contacto com pessoas e terras diferentes sirva para moldar as suas identidades. Quero que vejam que no desejo universal de sermos felizes, de desenvolvermos os nossos dons, de ajudarmos o próximo, de amarmos e sermos amados — somos todos iguais. Ninguém é melhor do que os outros, e a felicidade ou a dignidade humana de uns nunca pode ser mais importante do que a dos outros.
Era essa a lição a aprender quando eu e a Jenn estivemos na Tanzânia com um casal masai, Anna e Sanare, num pequeno complexo familiar que eles tinham construído ao longo de anos. Acomodaram-nos naquilo que antes tinha sido um curral de cabras. Quando se casaram, Anna e Sanare ficaram a viver nesse curral. Mais tarde, construíram uma casa maior e mudaram-se para outra divisão, deixando as cabras reclamarem o seu espaço. Quando eu e a Jenn fomos para lá, as cabras tiveram de sair durante uns dias (pelo menos quando deixávamos a porta fechada!). Aprendi mais nessa estadia do que alguma vez aprendera em qualquer outra viagem ao serviço da fundação. Fiquei sobretudo a saber mais acerca dos fardos que pesam sobre uma mulher que tem de gerir um lar e uma quinta.
Sanare saía de manhã para ir trabalhar na pequena banca comercial da família, a uma hora a pé de casa, pela estrada principal. Geralmente ia a pé, mas às vezes apanhava boleia do vizinho que o levava de mota. Anna ficava a cuidar da casa e da quinta. Eu e a Jenn ficávamos a ajudá-la com as tarefas domésticas.
Desde o início da nossa fundação, já tinha ido a vários países pobres e nunca me surpreendia ver as mulheres encarregarem-se sozinhas das tarefas de cozinhar, limpar e cuidar dos outros. Mas, até então, nunca tinha sentido o verdadeiro peso que carregam diariamente às costas — não tinha noção de tudo o que faziam, desde que acordavam antes de o Sol nascer, até se irem deitar, muito depois de o Sol se pôr.
(...) Anna passava 17 horas do dia numa azáfama. O número de horas e a intensidade do trabalho que ela fazia foram uma revelação para mim. Não há livro que o consiga transmitir. Senti-o na pele. Via que Anna e Sanare se amavam e se esforçavam muito por partilhar irmãmente as tarefas. Mas, mesmo assim, Anna e as outras mulheres da aldeia debatiam-se com um fardo pesadíssimo de trabalho não remunerado que não era equitativamente distribuído entre homens e mulheres. Um fardo que não se limitava a afetar as vidas das mulheres, mas também lhes obscurecia o futuro.
Enquanto cozinhávamos no lume que acendemos na cozinha, aproveitei para conversar com Anna e perguntei-lhe o que é que ela faria se tivesse mais tempo. Ela respondeu-me que gostaria de ter o seu próprio negócio, criar uma nova raça de galinhas para vender os ovos em Arusha, a uma hora de carro da sua casa. Essa fonte de rendimento seria suficiente para mudar as suas vidas, mas não passava de um sonho. Anna não tinha tempo para dedicar a um negócio porque passava o dia inteiro a ajudar a família na azáfama do dia a dia.
Também tive a oportunidade de conversar com Sanare, que me disse que ele e Anna estavam preocupados com a filha, Grace, que chumbara no teste de admissão a uma escola secundária subsidiada pelo governo. Grace só tinha mais uma hipótese de fazer o teste. Se não passasse à segunda tentativa e quisesse continuar a estudar, teria de ir para um colégio interno privado muito caro. Se Sanare e Anna não conseguissem arranjar dinheiro para isso, Grace perderia a oportunidade de vir a ter uma vida melhor.
“Tenho receio que a minha filha venha a ter a mesma vida que a minha mulher”, comentou. “Se não puder estudar, Grace terá de ficar em casa e passar os seus dias com outras raparigas como ela. As famílias começarão a casar as filhas, e todas as suas esperanças cairão por terra.” Era uma situação especialmente complicada para Sanare e Anna porque o filho Penda tinha passado no teste para frequentar uma escola pública, que não era gratuita mas relativamente barata. Penda tinha o futuro assegurado, mas Grace ainda não. Penda e Grace são gémeos e frequentam o mesmo ano escolar. São os dois inteligentes, mas Grace trabalha mais em casa do que Penda. Enquanto Grace cumpre as suas tarefas, Penda pode estudar.
(...) Há milhões de raparigas como a Grace, para quem o tempo passado a fazer trabalho não remunerado é precioso, porque determina se terão uma vida feliz que lhes permita prosperar ou uma vida árdua, passada a cozinhar e a limpar, sem terem tempo para aprender ou crescer.
Essa minha estadia na Tanzânia permitiu-me perceber que o trabalho não remunerado é mais do que um sintoma do preconceito de género. É uma realidade cuja mudança poderia beneficiar muito as mulheres, dando-lhes força; portanto, quis saber mais.
As pioneiras
Durante muito tempo, os economistas não reconheciam o trabalho não remunerado como trabalho — nem a parcialidade que define certas tarefas como “tarefas de mulher”, nem o preconceito que desvaloriza esse trabalho, nem a predisposição para distribuir esse trabalho de forma desigual entre homens e mulheres. Durante anos, para avaliar a produtividade de uma quinta familiar, os economistas só somavam as horas de trabalho passadas no campo, sem incluir o tempo que as mulheres passavam a cozinhar, a limpar e a cuidar da família para permitir a produtividade do trabalho agrícola. Nem os analistas mais sofisticados se aperceberam desse trabalho durante anos. Ou não lhes ocorria de todo ou, se ocorresse, desvalorizavam-no, com a justificação de que era simplesmente assim que o mundo funcionava — as mulheres teriam sempre esse fardo adicional, como o de carregar uma criança no ventre.
Essa recusa dos economistas em reconhecer o trabalho não remunerado ainda se foi tornando mais absurda com a entrada de cada vez mais mulheres no mercado de trabalho. Uma mulher tinha de cumprir o seu trabalho remunerado a tempo inteiro e, quando acabasse, ainda tinha de ajudar os filhos a fazerem os trabalhos de casa, aspirar a sala, tratar da roupa, preparar o jantar e deitar os miúdos — horas e horas de trabalho que passavam completamente despercebidas e não contavam para nada.
Uma economista chamada Marilyn Waring identificou esse enorme preconceito e começou a procurar formas de o alterar. Tendo sido eleita para o Parlamento da Nova Zelândia em 1975, com apenas 23 anos, sabia como era estar empregada e ser ignorada pelos homens que criavam as leis. Então, decidiu procurar estudos sobre o trabalho não remunerado das mulheres, mas não encontrou absolutamente nada. Quando pediu ajuda a um economista, ele disse-lhe: “Oh, Marilyn, não há grande coisa sobre isso. Tu, que sabes bastante do assunto, deverias escrever qualquer coisa.”
Assim, Waring percorreu o mundo para estudar o trabalho não remunerado — e, segundo os seus cálculos, se contratássemos trabalhadores ao preço de mercado para fazerem todo o trabalho não remunerado que as mulheres fazem, o trabalho não remunerado seria o maior setor da economia global. Apesar disso, os economistas recusavam-se a contabilizá-lo.
Waring apresentou a questão de outra maneira. Pagamos para cuidarem dos nossos filhos, pelo gás para acender o fogão, para uma fábrica transformar cereais em comida, pela água que sai das nossas torneiras, pelas refeições que nos servem nos restaurantes e para lavar a roupa numa lavandaria. Mas se uma mulher fizer isso tudo — cuidar dos filhos, cortar lenha para o lume, moer os cereais, ir buscar água, preparar as refeições e lavar a roupa — ninguém lhe paga. Não é contabilizado porque é apenas “trabalho doméstico”, e isso é “gratuito”.
Waring publicou o livro, If Women Counted: A New Feminist Economics, em 1988. Tal como diz a economista americana Julie Nelson: “O trabalho de Marilyn Waring veio despertar as pessoas.” Em 1985, as Nações Unidas já tinham adotado uma resolução em que davam um prazo de 15 anos, até 2000, para que todos os países passassem a contabilizar o trabalho não remunerado das mulheres. Depois de Waring ter publicado o seu livro, esse prazo recuou para 1995.
(...) Após a publicação do livro de Waring, a economista Diane Elson propôs um quadro tripartido para diminuir o fosso entre o tempo que homens e mulheres dedicam ao trabalho não remunerado. Chamou-lhe os 3 R: reconhecer, reduzir e redistribuir.
Elson diz que temos de começar por reconhecer que há quem faça trabalho não remunerado. É por isso que precisamos que os governos contabilizem as horas que as mulheres passam a fazer trabalho não remunerado. Depois, podemos reduzir o número de horas que esse trabalho não remunerado implica, recorrendo a tecnologias como fogões de cozinha, máquinas de lavar a roupa ou bombas para o leite materno que sejam mais eficazes. Por fim, podemos redistribuir o trabalho que não é possível reduzir, para que homens e mulheres o partilhem equitativamente.
Ao refletir sobre o conceito de trabalho não remunerado, passei a encarar aquilo que se passa na nossa casa sob outra perspetiva. Vou ser franca — contei sempre com muita ajuda para cuidar dos nossos filhos e gerir as tarefas domésticas. Não posso dizer que tenha sentido na pele a dificuldade que outros casais têm em equilibrar a vida profissional e a vida pessoal, da família e do lar. Apesar de não ter o direito de falar por essas pessoas e de nunca poder comparar a minha situação com as delas, sei reconhecer o desequilíbrio na distribuição do trabalho não remunerado se o presenciar na minha própria casa — e é o que acontece! Criar um filho dá imenso trabalho, que implica: levá-lo à escola, ao médico, aos treinos desportivos e às aulas de teatro; supervisionar os trabalhos de casa; partilhar refeições; manter a coesão entre a família e os amigos em festas de aniversário, casamentos e eventos escolares. É uma tarefa que consome muito tempo, e houve várias ocasiões em que fui ter com o Bill, exausta, para lhe dizer: “Socorro!”
No outono de 2001, quando a Jenn já tinha idade para frequentar o jardim de infância, encontrámos a escola que achávamos ideal para ela, mas que ficava a 30 ou 40 minutos de casa e implicava atravessar uma ponte. Sabia que teria de fazer esse percurso de ida e volta duas vezes por dia e, quando me queixei ao Bill do tempo que passaria no carro, ele disse: “Posso partilhar essa tarefa contigo.” Admirada, perguntei: “A sério? Fazes isso?” “Claro”, respondeu ele. “É mais uma oportunidade que tenho de conversar com a Jenn.”
Então, o Bill começou a pegar no carro. Saía de casa, deixava a Jenn na escola, dava a volta, passava novamente pelo nosso bairro e seguia para a Microsoft, que ficava do lado oposto. Fazia isso duas vezes por semana. Ao fim de três semanas comecei a reparar, nos dias em que era eu a levá-la, que havia muitos pais a deixarem os miúdos na escola. Um dia, dirigi-me a uma das mães e comentei com ela: “Olá, tudo bem? Vejo aqui imensos pais.” E ela respondeu: “Quando vimos o Bill ao volante, fomos para casa e dissemos aos nossos maridos: ‘Se o Bill Gates pode levar a filha à escola, tu também podes.’” (...)
Descobrir o preconceito escondido
Não podemos resolver o problema da desigualdade no trabalho não remunerado enquanto não atacarmos o preconceito de género que lhe está subjacente. Expor o preconceito de género é uma experiência incrível para as pessoas que se apercebem subitamente daquilo que o seu ângulo de visão não lhes permitia ver — não importa em que parte do mundo seja.
Há uns anos, estive na região rural do Malawi a assistir a um diálogo entre homens e mulheres organizado por um grupo local para expor os preconceitos escondidos. Lembro-me de estar sentada num círculo de homens e mulheres à sombra de uma árvore enorme, ao lado de um lote agrícola. À nossa frente, uma agricultora chamada Ester pegou numa folha grande de papel branco e desenhou um relógio. Depois, pediu aos homens sentados no círculo para lhe explicarem, passo a passo, como era para eles um dia típico. Todos referiam o tempo que passavam a trabalhar no campo, a dormir, a comer e a descontrair.
Em seguida, quando Ester fez o mesmo com as mulheres, todos pudemos constatar que os seus dias eram muito mais preenchidos. Antes, sequer, de porem os pés nos campos, as mulheres já cumpriam o equivalente a um dia de trabalho a tempo inteiro, só a apanhar lenha, a ir buscar água, a cozinhar e a cuidar dos filhos. Assim, tinham menos tempo disponível para trabalhar nos seus próprios lotes — apesar de os familiares dependerem do que elas produziam para sobreviver.
Os homens riram-se e fizeram piadas, mas essa reação devia-se, em parte, à descoberta embaraçosa que estavam a fazer: de que as mulheres trabalhavam muito mais do que eles. Claramente surpreendidos, os homens argumentaram que nunca tinham reparado no quanto as suas mulheres andavam ocupadas. (...)
Dirigido por Gary Barker, o grupo MenCare incentiva os homens de todo o mundo a assumirem tarefas em que tenham de prestar cuidados — e detém dados convincentes para explicar porque que os homens devem ter todo o interesse em fazê-lo. Os homens que também prestam cuidados são mais felizes. Têm relacionamentos mais saudáveis e filhos mais felizes. Os pais que assumem pelo menos 40% da responsabilidade de cuidar dos filhos correm menos risco de desenvolver depressões ou consumir drogas, enquanto os filhos obtêm melhores resultados nos testes, têm uma autoestima mais forte e apresentam menos problemas de comportamento. Segundo o MenCare, os pais que ficam em casa a cuidar dos filhos demonstram sofrer as mesmas alterações hormonais ao nível do cérebro que as mães que ficam em casa a cuidar dos filhos, o que pode muito bem vir desconstruir a noção de que as mães são biologicamente mais aptas a cuidar dos filhos.
Equilibrar o trabalho não remunerado, equilibrar as relações
É verdade que as mulheres tendem naturalmente a cuidar dos seus e a ser competentes a gerir uma casa. Mas os homens também. Se só as mulheres assumirem esses deveres, os homens nunca poderão desenvolver as capacidades necessárias para também poderem cumpri-los, e as mulheres nunca poderão desenvolver as suas capacidades para poderem dedicar-se a outras tarefas. Quando os homens desenvolvem a capacidade de cuidar dos seus, o número de pessoas aptas a prestar cuidados duplica. É uma forma de criar laços fortes com os filhos, que trazem muita alegria e duram uma vida inteira. Além disso, ajuda homens e mulheres a desenvolverem uma gama mais vasta de capacidades. Melhor ainda, a diminuição do domínio masculino que advém dessa mudança melhora os relacionamentos entre homens e mulheres. A existência de uma categoria de tarefas que seja considerada “trabalho para mulheres” e que os homens não queiram partilhar consolida uma falsa hierarquia que impede os homens e as mulheres de fazerem um trabalho produtivo em conjunto. Na verdade, quebrar essa hierarquia é dar força aos homens, porque lhes permite descobrir o poder da parceria e desenvolver o seu lado carinhoso.
Na sua obra extraordinária, Journey of the Heart, John Welwood refere aquilo a que chama “um processo de equilíbrio natural” entre parceiros. “Aquilo que um parceiro ignore, será aquilo que outro sentirá mais necessidade de salientar. Qualquer qualidade que eu negue em mim — força, delicadeza ou boa-disposição —, será aquela que a minha parceira se sentirá compelida a expressar com mais intensidade.”
Esta dinâmica leva a que uma pessoa se abstenha de fazer coisas que até gosta de fazer porque sabe que a outra as fará por ambos. Um bom exemplo seria uma pessoa que gosta de sair mas não faz nada para planear uma saída porque sabe que o parceiro ainda gosta mais e tratará de o fazer. Mas deixarmos que seja o nosso parceiro a fazer uma coisa que nós também gostamos de fazer conduz à separação. Um cônjuge que relegue a responsabilidade de cuidar dos filhos ao outro, está a debilitar a sua relação com os filhos, tal como um cônjuge que relegue ao outro a responsabilidade de ganhar um rendimento, está a debilitar a sua própria força. Pior ainda, homem e mulher estão a decepar o elo que os une.
Há uma abordagem muito melhor. Em vez de estarmos um a ignorar uma necessidade e o outro a salientá-la, podemos partilhá-la entre os dois. Não insistimos em que o tempo passado a cumprir uma tarefa seja matematicamente igual, mas ambos reconhece-mos as necessidades da família e ambos fazemos planos para tratar dela. As tarefas deixam de ser “minhas” ou “tuas” e passam a ser “nossas”. (...)
Parceria igualitária — o tema encoberto no trabalho não remunerado
Se me deixo envolver tanto no tema da desigualdade de género no trabalho não remunerado é, por um lado, por ser um fardo que tantas mulheres carregam e, por outro, pelo facto de as suas causas estarem de tal forma arreigadas que não é possível resolvê-las com uma solução técnica rápida. É preciso renegociar a relação. Para mim, não há pergunta mais importante do que esta: será a nossa relação principal feita à base de amor, respeito, reciprocidade e sentido de trabalho em equipa, de pertença e crescimento mútuo? Acho que, de uma maneira ou de outra, todos nos perguntamos o mesmo — porque acho que esse é um dos nossos maiores anseios na vida. (...)
O Bill disse muitas vezes nas suas entrevistas que sempre teve um parceiro em tudo o que fez na vida. É verdade, mas nem sempre foi um parceiro igual. O Bill teve de aprender a ser igual, tal como eu tive de aprender a subir um degrau para estar à altura dele. Tivemos de perceber quem era bom em quê para atribuir a cada um de nós mais tarefas em que éramos bons e menos tarefas em que não éramos tão bons. Mas também tivemos de decidir o que fazer quanto às convicções que cada um tinha que entravam em conflito com as do outro. Não é algo a que possamos fugir, porque partilhamos todas as grandes decisões e, se não aprendermos a gerir aquilo em que mais discordamos, ouvindo e respeitando o outro, então, os mais pequenos desentendimentos tomam proporções gigantescas.
Em 2002, quando a Phoebe nasceu, fizemos uma das coisas que mais nos ajudou a desenvolver uma parceria em pé de igualdade. Até aí, não me importava nada que o meu trabalho na fundação não passasse dos bastidores. O Bill dedicava menos tempo do que eu ao trabalho diário da fundação — porque ainda trabalhava a tempo inteiro na Microsoft —, mas era a ele que se dirigiam os repórteres, por isso ele tornou-se a voz e o rosto da fundação, a que a imprensa já se referia como a “fundação do Bill”. Não correspondia à verdade nem à visão que tínhamos da fundação, mas era o que estava a acontecer, porque era ele que se pronunciava publicamente a respeito dela, e não eu. Então, eu e o Bill tivemos uma conversa e concordámos que eu deveria dar a cara publicamente como cofundadora e copresidente da fundação, porque queríamos que as pessoas soubessem que éramos nós os dois que traçávamos a estratégia e fazíamos as coisas. Essa decisão pôs-nos no caminho para uma parceria em pé de igualdade.
Desde cedo que eu e o Bill enfrentámos uma segunda decisão que consolidou a nossa parceria e ainda hoje nos ajuda. Tínhamos começado a contratar pessoal na fundação, e algumas pessoas comentavam: “Ora, se a Melinda está a dedicar mais tempo à educação e às bibliotecas e a trabalhar no Noroeste do Pacífico, e o Bill está a voltar-se mais para a saúde global, porque é que não dividem os papéis e o Bill passa a tratar apenas da saúde global enquanto a Melinda se ocupa unicamente da educação e dos programas americanos?”
Discutimos essa possibilidade como casal e concordámos que não era isso que pretendíamos. Olhando para trás, percebo que dividir os nossos papéis teria sido uma grande perda, porque agora partilhamos tudo. Partilhamos um com o outro tudo o que aprendemos, lemos e vemos. Se tivéssemos dividido os nossos papéis, estaríamos a trabalhar em mundos separados e raramente nos encontraríamos. Poderia ter sido uma distribuição equitativa, mas não teria sido uma parceria em pé de igualdade. Teria sido mais como jogar em paralelo: não me meto nas tuas coisas e tu não te metes nas minhas. Essa foi outra decisão que nos empurrou na direção de uma parceria em pé de igualdade.
A pessoa que mais contribuiu naturalmente para a minha noção de que um casamento pode crescer e evoluir talvez tenha sido o meu pai, dando-me um bom exemplo de como um homem pode alimentar o seu casamento. (...)
Assim sendo, fiz os meus votos matrimoniais na expectativa de que o Bill contribuísse para consolidar o nosso casamento, e tive a sorte de ele também ter tido um bom modelo no seu próprio pai. O pai do Bill sempre acreditou piamente na igualdade das mulheres, e isso sempre foi evidente para quem o conhecesse, mas, há uns anos, ainda tivemos mais provas disso. O historiador de um projeto de história oral em que Bill Senior estava a participar mostrou-lhe um estudo académico que o meu próprio sogro tinha escrito logo após ter voltado para a universidade, depois de cumprir o serviço militar. Datado de 12 de dezembro de 1946, pouco depois de o meu sogro ter feito 21 anos, o estudo inclui o seguinte trecho: “A ideia mais extraordinária da Gateslândia é a de um estado perfeito em que as mulheres terão os mesmos direitos que os homens. Teríamos tantas mulheres no mundo profissional e empresarial quanto homens, e os homens considerariam normal e não anormal o acesso das mulheres a tais domínios.”
Este é apenas um vislumbre da mentalidade do homem que ajudou a criar o meu marido. (Nos últimos anos tenho dito com muito orgulho que criei um filho feminista, mas o avô talvez tenha sido o principal responsável.) O Bill também beneficiou da influência das mulheres fortes e ativas da sua família. A opinião da mãe era muito prezada. Pai e mãe esforçavam-se não só por desenvolver a carreira do pai, mas também por apoiar o trabalho que a mãe fazia como funcionária pública. (...)
Quando eu e o Bill nos casámos, durante o almoço do copo-d’água, a mãe, que nessa época estava muito doente com um cancro, leu em voz alta uma carta dirigida a mim. Terminava assim: “De quem muito se dá, muito se espera.” Ela tinha muita influência sobre o filho. E ele tinha uma enorme admiração por ela. A avó materna do Bill, que também ajudou a criá-lo, frequentou a Universidade de Washington e jogou basquetebol numa época em que as mulheres não faziam essas coisas. É por isso que digo que o Bill vem de uma família de mulheres fortes, inteligentes e bem-sucedidas. E tudo o que nos transmitem na nossa infância tem um grande impacto na nossa vida adulta. (...)
Penso, portanto, que o Bill queria uma parceria em pé de igualdade porque era esse o modelo que tinha em casa dos pais. E não só. Para isso contribuiu também o facto de ele gostar avidamente de aprender coisas novas e adorar um desafio. Um casal que se desafia mutuamente e em que as duas partes aprendem uma com a outra gera um espírito de igualdade na relação. Falo muito com o Bill sobre o quanto fico frustrada com a enlouquecedora morosidade da mudança. Ele sabe olhar para um evento, enquadrá-lo e preparar a mudança de acordo com o seu contexto histórico, científico e institucional. E eu ensino-lhe muitas coisas em termos de temperamento. (...)
A riqueza em abundância pode ser desconcertante. Pode empolar e distorcer a nossa identidade — especialmente se considerarmos que o dinheiro que temos é uma medida do nosso mérito pessoal. Apesar disso, o Bill é uma das pessoas que conheço com os pés mais assentes na terra, e isso deve-se ao facto de ter uma boa perspetiva do percurso que fez até chegar onde chegou. (...)
Se o Bill se sentiu atraído por mim graças ao meu entusiasmo pela vida, pelo software, pelas pessoas, por quebra-cabeças e por F. Scott Fitzgerald, eu senti-me atraída pelo Bill porque consegui ver que a faceta delicada e terna que ele escondia começava a surgir — a faceta que o faz ficar indignado quando vê que algumas vidas são mais valorizadas do que outras. Não podemos dedicar a nossa vida ao princípio de que todas as pessoas têm igual valor se nos considerarmos superiores aos outros. No fundo, o Bill não pensa dessa maneira, e essa é uma das qualidades que mais amo nele.