Ruralização da saúde e a reaproximação ao doente
O debate em saúde tem que conhecer as imperfeições intrínsecas do mercado em saúde. Decidir atos em saúde, políticos, administrativos ou de outra natureza, ignorando a sua verdadeira essência, a vida dos indivíduos e das populações, é a irrevogável condenação do SNS à falência.
Se há coisa que se tem esbatido no Serviço Nacional de Saúde em Portugal é o conceito de unidades funcionais hospitalares. Tomemos aqui a identidade dessas unidades funcionais como os serviços clínicos hospitalares. Este esbatimento tem-se salientado porque, no limite, os serviços clínicos não funcionam já como unidades funcionais. A unidade funcional única num hospital é o próprio hospital. Isto por força da excessiva centralização deliberativa.
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Se há coisa que se tem esbatido no Serviço Nacional de Saúde em Portugal é o conceito de unidades funcionais hospitalares. Tomemos aqui a identidade dessas unidades funcionais como os serviços clínicos hospitalares. Este esbatimento tem-se salientado porque, no limite, os serviços clínicos não funcionam já como unidades funcionais. A unidade funcional única num hospital é o próprio hospital. Isto por força da excessiva centralização deliberativa.
Tem-se tornado mais ou menos claro, ao longo dos últimos anos, desde a instalação de uma gestão quase que proprietária dos hospitais, uma reconcentração decisória nos cumes administrativos. Os serviços de especialidade perderam opinião, perderam independência e, consequentemente, todo o potencial deliberativo, que lhes permite a reorganização adaptativa para fazerem face às pressões específicas das suas populações, agoniza nas vascas de um naufrágio.
Tudo isto implica que as quase inexistentes unidades funcionais perderam a capacidade de exprimir as suas ideias e planeamentos com vista a responder às patologias que lhes entram pelas portas da urgência ou da consulta. Estas unidades converteram-se em extensões neuronais dos conselhos de administração, recebendo diretrizes superiores e avassalando-se permanentemente. Atualmente, só pontualmente se vê um serviço que se auto-investigue, que se estude. Os serviços geralmente não estudam. Porque, se estudassem, açodavam as próprias consciências e apontavam um dedo delator a algumas orientações economicamente “efetivas” das fidalguias administradoras. Aquilo que o bom tom dita é que os serviços façam revisões de séries dos seus doentes que servem apenas para perorar conclusões nos congressos. Trabalhos clínicos inovadores, no âmbito dos internatos médicos por exemplo, escasseiam por ausência de estrutura e cultura apropriadas. Executam-se comunicações em congressos por pressão curricular. É uma bofetada na curiosidade médico-científica. E assim passa a charanga.
Estamos a atravessar períodos de resistência à moralidade no SNS, debatendo-se a saúde com apologias da contenção das despesas, em acessos à saúde medidos em números de consultas, urgências e cirurgias, sem valorizar os doentes e os profissionais de saúde. Há uma quebra manifesta nos valores principiadores da altercação em saúde. Quando falam em recursos parcos e na necessidade de priorização e investimento com qualidade, falta-lhes acrescentar ao raciocínio um elemento de seriedade e ferocidade moral à palavrosa retórica do costume.
Transita-se para uma mecanização da saúde, com uma progressiva desumanização dos cuidados em saúde, fornecida por serviços desalmados, sem opinião. Há uma “industrialização” quase colérica da saúde. É necessária uma “ruralização” da saúde, quer ao nível das decisões estratégicas, quer das táticas e técnicas. E este conceito que aqui introduzo, a “ruralização” em saúde, consubstancia dois aspetos: a re-humanização e a desconcentração, com regresso à periferia, aqui entendida como as unidades funcionais que são os serviços hospitalares. Simultaneamente, é necessário uma “desmonarquização” hospitalar, com enfraquecimento da centralidade régia administrativa, e uma maior partição deliberativa fomentadora de uma interpelação dos serviços clínicos, os maiores conhecedores das suas circunstâncias. Isto é ruralizar, aproximar os serviços de saúde aos doentes e às suas solicitações clínicas.
É fulcral uma revivificação dos serviços autónomos, com capacidade de contratação, com força parlamentar em negociações com as administrações, com estabelecimento de reuniões representativas dos mesmos, com canais de comunicação entre os diversos serviços, eficazes na constituição de equipas multidisciplinares. Só assim é possível restabelecer a humanização da medicina com robustecimento moral e científico dos serviços em saúde.
O debate em saúde tem que conhecer as imperfeições intrínsecas do mercado em saúde. Decidir atos em saúde, políticos, administrativos ou de outra natureza, ignorando a sua verdadeira essência, a vida dos indivíduos e das populações, é a irrevogável condenação do SNS à falência.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico