A taxa das celuloses
O inimigo era a indústria do papel, mas na proposta do Bloco, se fosse aprovada, seriam até aqueles que utilizam uma árvore para fazer um cabo de canivete. Vai tudo raso, ninguém se salva.
O debate do Orçamento do Estado para 2020 tem vindo a revelar alguns pormenores que demonstram bem a superficialidade com que alguns assumem a despesa do Estado e, ainda, as formas de arrecadar tributos para lhes fazer face.
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O debate do Orçamento do Estado para 2020 tem vindo a revelar alguns pormenores que demonstram bem a superficialidade com que alguns assumem a despesa do Estado e, ainda, as formas de arrecadar tributos para lhes fazer face.
Parece consolidar-se a perspetiva de que a “elasticidade” fiscal, para famílias e empresas, tudo suporta, que se pode inventar mais um imposto ou uma taxa como se Nossa Senhora de Fátima se tivesse transformado em Midas de serviço.
O Bloco de Esquerda, qual Litierses dos dinheiros privados, resolveu fazer regressar uma “proclamação” que fiscalistas já tinham sentenciado e constitucionalistas já tinham rejeitado – a da criação da “taxa das celuloses”.
Desconfiamos sempre da tática do Bloco de Esquerda, porque não raras vezes tem cartas marcadas. Neste debate, a “taxa das celuloses” não abandona a regra.
O mundo rural português, implicado pela desertificação, pelo despovoamento, pela incredulidade, pelo afastamento da ciência e da inovação, coloca os agentes políticos perante a obrigação de um novo tempo, de um acerto das opções públicas. É aí que está também o desafio da floresta sustentável, equilibrada, rentável e vivida.
António Costa tem toda a razão sobre a prioridade a dar à floresta. Não pode ser só a leitura sobre os incêndios, mas essencialmente o que está para além disso. O cadastro e uma nova política fiscal dele decorrente, o combate ao abandono, as obrigações dos proprietários, a quadrícula, as densidades e as espécies, a conservação do solo, as implicações nos recursos hídricos, todos estes universos devem obrigar a uma política com um comando forte e com uma matriz programática facilmente aceite, amplamente sufragada.
Um conjunto de agentes elegeu o eucalipto e as celuloses como inimigo a abater. E como alguns universos de “urbanos” não querem ser importunados pelas imagens de um país a arder, aceitaram, de bom grado, esse inimigo. A estratégia tem resultado, mas deve ser combatida.
A fileira do eucalipto é essencial para o território, para o rendimento dos produtores e para a economia portuguesa. As exportações das fileiras florestais são implicadas pela indústria do papel de forma muito significativa. Mas isso não importa nada, há um alvo e um agente que deve ser derrubado numa estratégia que oscila entre as leituras estalinistas e as opções trotskistas – os produtores e transformadores de espécies de crescimento rápido são inimigos do povo e, por consequência, do país.
Considerar as celuloses virgens ofendidas não é o meu desporto favorito. As empresas fazem o que lhes deixam fazer, desenvolvem a sua atividade dentro das regras que os poderes públicos lhes concedem. Mas não podemos transformá-las em novos homiziados que devem ser repelidos de um idílico planeta.
Neste aspeto, importaria olhar de forma igualmente criteriosa para as restantes fileiras, para as suas situação e urgências, e consagrar que a fileira do “pinho” vive situações bem mais graves, perigosas e nefastas para a cadeia de valor.
Os bloquistas (também os Verdes, mas sem o mesmo sucesso) anunciaram da varanda de S. Bento a obrigação desse tal tributo que deveria ser pago pelas celuloses. Porém, muitos portugueses, que não se preocupam com as malabarices de alguns políticos, não sabem que essa tal nova “taxa” é um tsunami sobre tudo o que se movimenta, mesmo que seja como uma lesma, na floresta portuguesa.
A proposta do BE diz que o Governo deve estabelecer “uma taxa anual a incidir sobre o volume de negócios de sujeitos passivos de IRS ou IRC que exerçam, a título principal, atividades económicas que utilizem, incorporem ou transformem, de forma intensiva, recursos florestais”.
Não haverá qualquer celulose, corticeira, carpintaria ou serração que não fique sujeita a “taxa; não haverá produtor de pellets e briquetes, utilizador de biomassa, transformador de pinhão, coletor de cogumelos que não se obrigue a dar mais uns cobres ao Estado; não haverá nenhuma pequena empresa ou cooperativa que utilize a castanha e a transforme que não esteja na mira dos inspetores do fisco se não liquidar a “taxa” inventada pelo Bloco; não haverá qualquer fábrica de móveis que, transformando madeira, não coloque em cima do produto final a “BE-taxa”.
Olhando só para a fileira do pinho, não haverá nenhuma fábrica que faça equipamentos para logística, nenhuma unidade que aparelhe e coloque pavimentos ou nenhuma indústria que utilize a madeira para peças de isolamento que não fique sujeita à tal invenção – a taxa. Volto a escrever: “…volume de negócios de sujeitos passivos de IRS ou IRC que exerçam, a título principal, atividades económicas que utilizem, incorporem ou transformem, de forma intensiva, recursos florestais.”
Os joelhos de quem escreveu a proposta do BE estavam já cansados e a mente perturbada quando se escreveu que a “taxa” pudesse ser estabelecida de forma diferente por atividade económica. Já indiquei a imensidão de atividades que podem ser implicadas pela incorporação e transformação de recursos florestais. A gradação da contribuição, tendo em conta o tal universo amplo, baterá contra as obrigações de equidade e justiça fiscal que se impõem.
Procurei, até ao final da Nota Justificativa que acompanhava a proposta, uma forma de separar o que de nacional se transforma e incorpora e o que de importado se revela em novos produtos. O texto é bem claro, os recursos florestais importados e aqui transformados ou incorporados – por exemplo, o casco de um veleiro ou os suportes de um veículo –, desde que em madeira, mesmo que importada e que não exista sequer em Portugal, também vão pagar a tal “taxa” das celuloses. Fantástico.
O inimigo era a indústria do papel, mas na proposta, se fosse aprovada, seriam até aqueles que utilizam uma árvore para fazer um cabo de canivete. Vai tudo raso, ninguém se salva.
Os bloquistas, se esta leviandade fosse confirmada, imaginariam já um amanhã que um dia cantaria – uma taxa sobre as cervejeiras. Afinal elas incorporam e transformam cevada. Preparem-se, será assim que se poderá arranjar dinheiro para os jardins suspensos das casas das Avenidas Novas onde os dirigentes do BE habitam.
Deputado do PS; secretário de Estado das Florestas 2008/2009
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico