Diplomatas portugueses salvaram entre 60.000 a 80.000 vidas durante a II Guerra
Durante a II Guerra Mundial, um visto para Portugal, ainda que de duração limitada (30 dias), assegurava que estavam salvos e podiam seguir viagem para África ou para as Américas. Ao saírem, já sabiam que não podiam regressar ao país de origem.
Os diplomatas portugueses terão salvado entre 60.000 a 80.000 refugiados do regime nazi, maioritariamente judeus, durante o período da II Guerra Mundial, estimou a historiadora Irene Flunser Pimentel em entrevista à agência Lusa.
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Os diplomatas portugueses terão salvado entre 60.000 a 80.000 refugiados do regime nazi, maioritariamente judeus, durante o período da II Guerra Mundial, estimou a historiadora Irene Flunser Pimentel em entrevista à agência Lusa.
Além de Aristides Sousa Mendes, o cônsul de Portugal em Bordéus, que em Julho de 1940 desobedeceu às ordens do chefe do Governo, Oliveira Salazar, concedendo milhares de vistos, outros diplomatas tiveram intervenção directa no salvamento de judeus e outros refugiados em diferentes momentos, entre os anos 30 do século XX e o final da guerra, em 1945.
“Há vários diplomatas que escrevem ao Ministério dos Negócios Estrangeiros, cujo ministro é o próprio Salazar, dizendo que não podiam dizer a palavra ‘não'”, contou a historiadora, com vários livros editados sobre este período, entre os quais Salazar, Portugal e o Holocausto, (em co-autoria com Cláudia Ninhos).
Um dos casos esquecidos, frisou, é o de José Augusto Magalhães, ministro plenipotenciário (chefe de missão diplomática) em Marselha: “Ele explica porque não pode obedecer a uma circular e pede a demissão”. A circular em causa impedia os cônsules de concederem vistos a cidadãos que estavam impedidos de regressarem livremente aos países de origem, o que visava os judeus.
“Houve vários tipos de atitudes”, explicou, recordando outro caso. Agenore Magno, italiano, cônsul honorário em Milão, que a partir de 1938 concedeu vários vistos a judeus, já contra as leis da época, até ser afastado do cargo e impedido de passar mais vistos: “Mas fica a gerir o consulado em Milão”. Muitos outros diplomatas tentaram justificar a sua acção e no caso de Agenore Magno era apoiado pelo embaixador em Roma. O superior hierárquico defendeu que o cônsul pode ter concedido vistos contra as ordens e as circulares da PVDE (polícia política do Estado Novo antecessora da PIDE) e do Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas fê-lo por razões humanitárias.
“Houve outros, sobretudo cônsules honorários, porque normalmente eram da nacionalidade dos países onde actuavam”, contou a especialista em história contemporânea.
"Havia uma selecção dos judeus a quem se davam os vistos"
Irene Pimentel recordou também o cônsul honorário em Hamburgo, judeu alemão, tal como outros que ocupavam postos em consulados um pouco por toda a Alemanha, e o papel desempenhado por Veiga Simões, ministro plenipotenciário em Berlim até 1940.
“Não é que ele desobedeça, ele dá muitos vistos e, sobretudo, tenta que o Ministério dos Negócios Estrangeiros e Salazar seja mais aberto na concessão de vistos”, referiu.
O diplomata tentou convencer o chefe do Governo de que havia personalidades que seriam muito importantes para Portugal e pediu vistos nem que fosse apenas para um determinado grupo. “Havia uma selecção dos judeus a quem se davam os vistos, aliás, o que faziam todos os outros países europeus, mesmo democráticos, e os EUA”, assumiu a historiadora, Prémio Pessoa 2007.
“Não entravam nesses países o desgraçado do alfaiate da aldeia polaca dos confins da Polónia, não! Eram médicos, juristas, artistas”, acrescentou.
Os diplomatas actuaram num contexto desencadeado a partir de 1933, quando começam a chegar aos vários países europeus refugiados que fogem da perseguição política e de “raça”, como o caso dos judeus, que assim eram considerados pelo regime nazi, uma “raça à parte” que estava na Alemanha.
Começaram por ser retirados das profissões, da administração pública e depois das várias profissões liberais, das escolas, das universidades, até que, em 1938 — ano chave na perseguição anti-semita — a política passa a ser não só de perseguição a nível interno, mas também de expulsão.
Um visto para Portugal, uma segunda oportunidade
Um visto para Portugal, ainda que de duração limitada (30 dias), assegurava que estavam salvos e podiam seguir viagem para África ou para as Américas. Ao saírem, tinham um passaporte especial, dizendo que não podiam regressar ao país de origem, deixando a propriedade judaica nas mãos dos nazis, frisou historiadora.
A política portuguesa passa também a ser de restringir a entrada no país a essas pessoas que não podiam regressar. “Portanto, permaneceriam em Portugal e competiriam até com os portugueses em certas profissões”, observou, destacando a questão dos médicos, muito em discussão na altura. Ainda assim, muitos refugiados entram em Portugal devido à posição dos vários cônsules, sublinhou Irene Pimentel.
Em 2018, Portugal e Israel organizaram uma homenagem conjunta a três diplomatas que se distinguiram no salvamento de judeus, reconhecendo Aristides Sousa Mendes, cônsul-geral em Bordéus, e Carlos Sampaio Garrido, embaixador na Hungria, como Justos entre as Nações, e prestando também tributo a Carlos Teixeira Branquinho, encarregado de negócios em Budapeste.
Se Aristides Sousa Mendes sofreu as consequências de um processo disciplinar, no caso dos dois diplomatas na Hungria já não houve desobediência. Alegaram que os países neutros estavam a conceder documentos que não eram uma prova de nacionalidade, mas que permitiam que as pessoas pudessem salvar-se.
Uma mudança de mentalidades — e os portugueses fascinados com as pernas das mulheres estrangeiras
Durante o período da II Guerra Mundial, muitos refugiados aguardavam nas cidades portuguesas o embarque num navio ou avião que os levaria ao exílio definitivo, tornando “mais cosmopolita” o pacato ambiente de um pequeno país periférico, onde tudo chegava mais tarde.
As mulheres estrangeiras que se refugiaram em Portugal do regime nazi trouxeram hábitos diferentes, como as saias mais curtas, levando os portugueses a apelidar a praça do Rossio, em Lisboa, onde se sentavam nas esplanadas, de “bonpernasse”. “Os portugueses diziam que era o Montparnasse parisiense, mas ‘bonpernasse’, devido às pernas que as refugiadas mostravam nas esplanadas”, contou à agência Lusa a historiadora Irene Flunser Pimentel.
“No início vinham com casacos de peles, muitos deles com automóveis, que depois acabaram por vender, e acabaram por contagiar um pouco as mentalidades dos portugueses e das próprias mulheres portuguesas”, referiu a historiadora ao recordar o ambiente vivido na época em Portugal.
“Muitas destas mulheres refugiadas sentavam-se nas esplanadas a fumar — assim como faziam nos seus países —, tinham saias muito mais curtas do que as portuguesas, não punham luvas, nem chapéu no Verão, e eram uma espécie de espectáculo que era visto no Rossio, na Suíça”, exemplificou, referindo-se a uma das mais carismáticas pastelarias de Lisboa.
Nomes conhecidos passaram por Portugal
Muitos nomes consagrados passaram por Portugal nessa altura, por vezes clandestinamente e por pouco tempo, como foi o caso de Hannah Arendt, filósofa política alemã de origem judaica, considerada uma das mais influentes do século XX. “Não é muito conhecido, mas esteve cá três meses a aguardar um navio”, atestou a historiadora.
Arendt chegou a Portugal com vistos obtidos em Marselha através de uma organização norte-americana de apoio a refugiados “em perigo especial”. Muitas situações eram de adversários políticos.
Por Lisboa passou igualmente Franz Werfel, poeta e dramaturgo da Áustria, com a mulher (Alma), também artista, muitos escritores alemães, como Heinrich Mann, irmão de Thomas Mann, e Golo Mann, filho do autor de A Montanha Mágica, e também a filha Erica Mann.
“Muitos outros, músicos, atores, personalidades muito importantes passaram por aqui durante a II Guerra, a pontos que os jornais portugueses, que não podiam falar de refugiados, só falavam de refugiados de guerra, não de perseguições anti-semitas ou políticas, acabaram por dizer que Portugal era a nova Hollywood”, relatou a historiadora, em entrevista à Lusa.
“Aí Salazar acede por uma razão muito simples, também já sabe para onde é que vai o destino da guerra e tem muitas pressões já dos EUA e de Inglaterra. Ainda por cima numa altura em que já tinha cedido a base [Santa Maria] aos aliados ocidentais”, explicou Irene Pimentel.
Esta semana realiza-se em Jerusalém o 5.º Fórum Mundial do Holocausto que tem como lema Lembrando o Holocausto, combatendo o anti-semitismo para assinalar o 75.º aniversário da libertação do campo de concentração de Auschwitz. Estão previstos discursos dos presidentes de Israel, da Rússia, da França e da Alemanha, e do príncipe Carlos, em representação do Reino Unido, entre outros. O Presidente da República de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, vai participar no Fórum Mundial do Holocausto a convite do seu homólogo israelita, Reuven Rivlin, com quem terá uma reunião bilateral, na terça-feira.