Desigualdades e ideologias
O debate sobre a igualdade e a reprodução social afigura-se, portanto, mais urgente do que nunca. Até quando, com base numa narrativa sobre uma sociedade teoricamente aberta e livre, estaremos dispostos a aceitar a manutenção de um status quo que, no limite, põe em risco as nossas democracias?
O mais recente livro do economista francês Thomas Piketty, Capital et Idéologie, tem sido várias vezes referido na imprensa ao longo das últimas semanas. Retomando no essencial as ideias já apresentadas em O Capital no Século XXI, o autor tem sublinhado a crescente desigualdade na distribuição da riqueza, e a enorme concentração de rendimentos e capitais nos 10% mais ricos (ou, em alguns casos, no 1% do topo).
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O mais recente livro do economista francês Thomas Piketty, Capital et Idéologie, tem sido várias vezes referido na imprensa ao longo das últimas semanas. Retomando no essencial as ideias já apresentadas em O Capital no Século XXI, o autor tem sublinhado a crescente desigualdade na distribuição da riqueza, e a enorme concentração de rendimentos e capitais nos 10% mais ricos (ou, em alguns casos, no 1% do topo).
Piketty não deixa, contudo, de salientar que esse processo de concentração corre a par do aumento dos rendimentos a nível global. De facto, os níveis de pobreza também têm decrescido significativamente nas últimas décadas. Em paralelo com a análise de casos de várias sociedades de diferentes partes do mundo nos últimos séculos, uma das grandes novidades deste livro, e que é justamente aquela que tem suscitado um maior debate (sobretudo em França), é o último capítulo. Nele, a partir dos amplos materiais reunidos, o autor apresenta uma série de propostas para aquilo que chama de “socialismo participativo” desenhado para o século XXI. O objetivo essencial dessas propostas é implementar mecanismos de redistribuição mais ambiciosos, mas que, articulados entre si, funcionem como uma estratégia coerente que permita não só melhorar as condições de vida gerais das populações, mas também encurtar distâncias entre classes.
Neste ponto, sem dúvida que mundividências de esquerda ou de direita, socialistas, social-democratas ou liberais, se dividirão. Uns considerarão que a existência de tão graves clivagens é inaceitável e um risco para a sustentabilidade de um sistema democrático; outros, provavelmente inspirados pelos romances de Ayn Rand, acharão que as hierarquias que resultam das dinâmicas do mercado, tido como juiz soberano, não devem ser contestadas. Seja como for, uma das coisas mais importantes a salientar é a premissa em que assenta a construção deste trabalho de Piketty. A perspetiva estruturante do livro é que todas as sociedades constroem uma narrativa sobre as desigualdades que existem no seu interior. Essas narrativas são ideológicas porque se estruturam a partir de uma hierarquia de valores e de funções. Mas, como demonstra Piketty, não são apenas meras justificações de um estado de coisas, como se se tratasse de uma máscara conspirativa e maquiavélica desenhada pelos grupos dominantes para protegerem a sua posição. Não se trata apenas de os “ricos” ou “poderosos” usarem ideologias ou outras formas de opressão mais ou menos “musculadas” ou conscientes para manterem a sua posição. Estas narrativas ideológicas consolidam-se e perduram porque, face à mentalidade e à “tecnologia” de cada sociedade e do seu tempo, elas são plausíveis, o que não quer dizer, longe disso, que fossem ou sejam, em cada momento, a única solução possível ou até incontestada.
Parece-me que este ponto acentua desde logo a importância de compreender e explicar os fenómenos sociais, em detrimento de um entrincheiramento maniqueísta. Não podemos, por exemplo, olhar para um texto do século XV que discorra sobre a organização social e achá-lo uma simples tolice sem sentido. Se o fizermos, estamos certamente a cometer um anacronismo que não nos traz nenhum conhecimento válido. O que o conhecimento reunido pela história e pelas ciências sociais demonstra é que as hierarquias e desigualdades não resultam do vazio, e só se reproduzem porque, em larga medida, algumas das premissas que a suportam são percecionadas como positivas, como parte natural da ordem das coisas.
Sei-o, de resto, por experiência da minha própria investigação. Na sociedade medieval, a existência de hierarquias e desigualdades foi percecionada positivamente por, entre outros, teólogos e juristas; foi recebida e interiorizada pela generalidade da sociedade, que nelas via algo de orgânico, e olhava de forma desconfiada para a própria ideia de transformação. Por mais que a roda da fortuna girasse e os indivíduos ou linhagens que ocupavam as posições dominantes trocassem de lugar, a sociedade, em face dos seus fundamentos, não se poderia pensar de outra forma que não através da existência de desigualdades estatutárias e de poder.
O que a combinação da história e de outras ciências sociais como a economia, a antropologia e a sociologia tem demonstrado é que, até ao presente, nenhuma sociedade se conseguiu organizar sem a existência de hierarquias e desigualdades. O que, em todo o caso, não quer dizer que estas sejam ou devam ser aceites plenamente, nem que nada se possa fazer para combatê-las. Aliás, esta constatação também não deve ser tomada como uma inevitabilidade que nos impeça de imaginar outras formas de organização social.
No entanto, se constatar estes fenómenos em sociedades antigas ou distantes não parece problemático, como devemos encará-los nas nossas sociedades? O paradoxo parece acentuar-se pois, teoricamente, vivemos em sociedades livres: todos os indivíduos gozam dos mesmos direitos e deveres, não há nenhum posto ou cargo que se transmita sucessoriamente, e há instituições públicas como a escola que têm como missão reduzir o fosso entre classes. O que legitima, então, as desigualdades? É aqui que me parece que o conhecimento da história e das ciências sociais pode ter um papel importante. Sobretudo porque uma das suas funções é reconstruir padrões, estruturas e mecanismos sociais, cuja lógica de funcionamento não é por vezes visível a “olho nu”. Em sentido extremo, pode até acontecer que, na realidade, esses mecanismos e estruturas atuem em lógicas contrárias àquelas que se tornam visíveis. Efetivamente, o retrato que cada sociedade constrói de si mesma não chega para explicar e compreender a realidade.
Um dos exemplos disso é o que de facto acontece por trás do ideal da meritocracia. Não que a ideia não tenha a sua importância: simplesmente, a maneira como ela se tornou um verdadeiro axioma gerou uma certa hipocrisia. No quadro de uma sociedade teoricamente aberta, sem diferenças estatutárias, o mérito individual seria a única forma de produzir distinções, e estaria, portanto, aberto a todos. Mas o que se tem demonstrado é que a meritocracia não atua no vazio, porque pura e simplesmente não se pode fazer tábua rasa das condições de que os indivíduos partem. Por isso, um sistema que permite uma acumulação infinita de capital (económico, cultural, científico, social) num escol dominante dificilmente pode criar um contexto em que, salvo muito raras exceções, os que partem atrás ou muito atrás consigam melhorar a sua condição – pensar em uma dúzia ou até em 100 exceções como exemplos de sucesso ignora o facto de vivermos em sociedades onde as escalas estão nos milhões e não nos casos isolados.
Para além disso, poderemos perguntar-nos se a competição desenfreada enquanto elemento estruturante nas nossas sociedades contribuiu, de facto, para a nossa saúde coletiva. No plano das desigualdades, não basta pensar apenas no facto de os mais pobres viverem melhor do que há 50 anos. Se queremos viver numa sociedade democrática e verdadeiramente livre, devemos antes de tudo almejar a que todos possam, através do seu trabalho e do seu mérito, trilhar o caminho que desejam. Ignorar as condições de partida e nada fazer para as equilibrar só acentuará a perceção de injustiça que, como se sabe, é um risco real para qualquer sistema democrático.
Sabemos, para além disso, que não é só a riqueza que se reproduz: a pobreza, nas suas várias vertentes, também tem os seus próprios mecanismos de reprodução, que tornam o caminho para dela sair extremamente custoso e penoso. Elena Ferrante, Didier Eribon ou Édouard Louis, entre outros, têm-no demonstrado exemplarmente a partir dos seus romances e memórias.
O debate sobre a igualdade e a reprodução social afigura-se, portanto, mais urgente do que nunca. Até quando, com base numa narrativa sobre uma sociedade teoricamente aberta e livre, estaremos dispostos a aceitar a manutenção de um status quo que, no limite, põe em risco as nossas democracias? Os conhecimentos reunidos pela história e outras ciências sociais colocam à nossa disposição um vasto leque de informações sobre os mecanismos estruturais que funcionam na retaguarda das narrativas ideológicas que todas as sociedades produzem sobre si mesmas. São por isso imprescindíveis para o debate político e cívico que terá de definir o que queremos para o futuro das nossas sociedades.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico