Restaurante de Paul Bocuse, o “papa da cozinha francesa”, perde 3.ª estrela Michelin ao fim de meio século
O mundo da cozinha francesa está em choque. Para a Michelin, o restaurante, epicentro da cozinha de Bocuse, que morreu em 2018, “já não está ao nível das três estrelas”. “O Guia Michelin morreu, viva Paul Bocuse!”, escreveu o crítico gastronómico Périco Légasse.
Os inspectores do Guia Michelin tomaram uma decisão que está a pôr o mundo da gastronomia francesa em ebulição: retirou a terceira estrela que o restaurante principal do falecido chef Paul Bocuse, que chegou a ser nomeado o “cozinheiro do século” ou apelidado de o “papa da cozinha francesa”, mantinha há 55 anos.
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Os inspectores do Guia Michelin tomaram uma decisão que está a pôr o mundo da gastronomia francesa em ebulição: retirou a terceira estrela que o restaurante principal do falecido chef Paul Bocuse, que chegou a ser nomeado o “cozinheiro do século” ou apelidado de o “papa da cozinha francesa”, mantinha há 55 anos.
“É como se destronassem o papa”, diz o chef Marc Veyrat.
“As pessoas do Guia Michelin já não sabem comer”, diz o jornalista e crítico gastronómico Périco Légasse, que acrescentou uma contundente farpa no canal de televisão LCI: “A cozinha francesa está de luto hoje: perdemos o Guia Michelin”. No seu Twitter, o sarcasmo torna-se ainda mais contundente e revolucionário: “O guia Michelin morreu, viva Paul Bocuse”.
“Monsieur Paul”, escreve-se no jornal francês Libération, “deve estar às voltas no caixão”. O artigo tem também um título que resume o impacto da decisão da Michelin de retirar a terceira estrela ao restaurante que o chef Paul Bocuse transformou em meca gastronómica: “A Michelin destrona Bocuse”.
O guia, obviamente já prevendo a polémica, enviou mesmo um alto emissário – Gwendal Poullennec, o próprio director internacional dos guias – ao restaurante de Auberge du Pont de Collonges (em Collonges-au-Mont-d'Or, perto de Lyon) para justificar à equipa a decisão da queda de uma estrela.
“Os inspectores visitaram o estabelecimento várias vezes em 2019”, informaria depois Elisabeth Boucher-Anselin, directora para a área gastronómica e turística da Michelin, à France Info. E concluíram que a “qualidade continua excelente” mas que “já não está ao nível das três estrelas”, resumiu a responsável, que aproveitou para reforçar um já tradicional slogan: “O guia é feito para as pessoas que vão aos restaurantes”.
Mas a decisão é mesmo “um terremoto com epicentro em Lyon, a capital da gastronomia francesa”, como opina o Libération. Uma boa medida do impacto: só a cadeia francesa France Info já publicou quase uma dezena de peças sobre o acontecimento. Afinal, trata-se da “herança” do homem que era um ícone do país: “Monsieur Paul era a França”, como considerou o Governo francês, através do seu ministro do Interior, quando o chef morreu em 2018 – faz precisamente dois anos no dia 20 de Janeiro. “Os monstros sagrados dos fogões já não são eternos”, remata o Libération.
A notícia da perda da estrela, avançada esta sexta-feira pela organização do concurso internacional Le Bocuse d’Or, que homenageia o célebre chef francês, e confirmada pelo guia, chega noutra coincidência de datas: a pouco mais de uma semana da gala de lançamento da edição francesa, a 27 de Janeiro. Por coincidência, ou não, o restaurante agora-duas-estrelas de Bocuse reabre três dias antes, após quase um mês de férias.
“Embora transtornados pela decisão dos inspectores, há uma coisa que nunca queremos perder, que é a alma de Monsieur Paul”, lê-se num comunicado publicado hoje e assinado pela família Bocuse, pela equipa do restaurante (que já pertencia ao pai do chef ), e por Vincent Le Roux, que é director do espaço.
“A dez dias da saída oficial do Guia Michelin e pela primeira vez na sua história, o célebre guia vermelho anunciou que o Restaurante Paul Bocuse, triplamente estrelado desde 1965, foi classificado com duas estrelas”, refere-se. “Mesmo que as estrelas não pertençam a um chef, nem seria preciso dizer que toda a gente se perguntava qual seria o nosso futuro”, indicam, sublinhando que, após a morte do cozinheiro, desenvolveram um projecto global com toda a equipa chamado “A Tradição em Movimento”, que pretendia mostrar precisamente como a herança de Bocuse seria respeitada. A cozinha assim desenvolvida desde Outubro, sublinham, foi “considerada excepcional por inúmeros dos nossos clientes, por especialistas de gastronomia e jornalistas”.
O restaurante do Auberge du Pont de Collonges conquistou a primeira estrela em 1961, quando Bocuse ainda era um “ajudante” do pai no desenvolvimento do negócio. Foi após a morte do pai que o restaurante entrou definitivamente na constelação das estrelas-maiores, tendo recebido a terceira estrela em 1965. No Guia Michelin França para 2020 aparecerá “apenas” com duas estrelas, algo que para muitos chefs é um sonho (ainda há pouco se celebrou a segunda estrela de Rui Paula para a sua casa de Leça) mas que para a equipa da casa que é o coração do império Bocuse representa agora um pesadelo.
“Paul Bocuse era um visionário, um homem livre, uma força da natureza, e é nesse espírito que construímos a nova experiência que orquestrámos”, evoca a família Bocuse em comunicado. “De Collonges e do fundo dos nossos corações, continuaremos a dar vida ao Fogo Sagrado com audácia, entusiasmo, excelência e uma certa forma de liberdade”.
No guia de 2019 e online pode ler-se ainda que “o grande chef já não está, mas que a sua presença continua a iluminar este nobre templo da gastronomia”.
No ano passado, outra polémica pegou fogo na cozinha francesa quando o chef Marc Veyrat, da Maison du Bois, também foi rebaixado de três para duas estrelas. O chef processou a Michelin e perdeu, conforme decisão do tribunal em Dezembro. Mas avisou logo que a guerra legal contra a empresa vai continuar. Considerado o “inimigo n.º1 da Michelin” em França, Veyrat lançou mais uma facada ao Libération a propósito do caso Bocuse. "É alucinante, querem destruir uma geração de cozinheiros. Se os chefs fossem solidários, deveríamos renunciar todos à Michelin”.
Mas polémicas não têm faltado à empresa nos últimos meses. Uma das mais recentes chegou da Coreia do Sul, que processou a Michelin por esta o ter incluído no guia: “É um insulto que o meu nome e restaurante sejam listados num guia corrupto”, disse Eo Yun-gwon.
Em Portugal, a polémica maior ficou em 2019 por conta de Henrique Leis, o chef que anunciou querer perder a sua estrela Michelin. O guia fez-lhe a vontade.