Democratizar a energia elétrica para conter as alterações climáticas
É possível antecipar a descarbonização da produção de energia elétrica para ajudar a conter as alterações climáticas e, ao mesmo tempo, aumentar o bem-estar das populações. O novo regime jurídico do “autoconsumo de energia renovável” é um passo nesse sentido, mas é preciso ir mais longe e mais depressa.
Em Portugal, o Roteiro para a Neutralidade Carbónica visa reduzir as emissões de gases de efeito de estufa das atuais 70Mt (milhões de toneladas) para 10Mt de CO2 eq./ano em 2050, um objetivo que o movimento da Greve Climática Estudantil considera insuficiente e quer ver antecipado para 2030, ou seja, para daqui a pouco mais de dez anos.
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Em Portugal, o Roteiro para a Neutralidade Carbónica visa reduzir as emissões de gases de efeito de estufa das atuais 70Mt (milhões de toneladas) para 10Mt de CO2 eq./ano em 2050, um objetivo que o movimento da Greve Climática Estudantil considera insuficiente e quer ver antecipado para 2030, ou seja, para daqui a pouco mais de dez anos.
O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, o ex-comissário europeu Carlos Moedas e instituições como o World Resources Institute têm vindo a legitimar esta exigência dos jovens, e não se têm cansado de chamar a atenção para a insuficiência das medidas que estão a ser tomadas com vista à contenção das alterações climáticas. No domínio da Engenharia, a WFEO, Federação Mundial das Organizações de Engenheiros, publicou recentemente a Declaração de Emergência Climática, um documento que foi imediatamente subscrito em Portugal pela Ordem dos Engenheiros, onde se foca a necessidade duma total mudança de paradigma e de se avançar para essa mudança com urgência.
Impõe-se, por isso, acelerar drasticamente a progressão neste domínio e atuar em várias frentes. Em Portugal, a da produção de energia elétrica, responsável por 26% das emissões, é atualmente a mais importante, logo seguida pela dos transportes, responsáveis por outros 25% das emissões, onde avulta o transporte rodoviário.
Num caso e noutro não é por falta de tecnologia que as medidas necessárias não avançam. É sobretudo pela grande inércia dos sistemas envolvidos, quer o electroprodutor quer o dos transportes, agravada pela resistência à mudança por parte dos interesses instalados. No que toca ao transporte rodoviário, a mobilidade elétrica está a impor-se rapidamente, graças a vários fatores, desde logo pela redução de custos, mas também pela instabilidade dos preços dos combustíveis.
Para conseguir antecipar a neutralidade carbónica para 2030 é, portanto, necessário dirigir prioritariamente o enfoque para a parcela correspondente à produção de energia elétrica.
Basicamente, trata-se de, em dez anos, aumentar a produção renovável de energia elétrica o suficiente para permitir eliminar a potência instalada não renovável. As três tecnologias que estão presentemente disponíveis de imediato, a eólica, a fotovoltaica e a biomassa, podem ser utilizadas usando o modelo da produção centralizada, que vem sendo seguido desde os anos quarenta do século passado, ou o modelo da produção distribuída, que, embora timidamente, vem fazendo o seu caminho. A eólica em terra teve uma notável expansão na última década e a ela se deve o progresso na descarbonização da produção de energia elétrica entretanto conseguido, de que nos podemos orgulhar. Quer a tecnologia eólica, quer a fotovoltaica, têm, no entanto, a desvantagem da intermitência, que se traduz em dois requisitos: a necessidade de maior potência instalada para produzir a mesma quantidade de energia elétrica e a necessidade de capacidade de armazenamento. A biomassa é relevante em Portugal em termos de consumo de energia final mas, no que toca à produção de energia elétrica, o seu contributo é pequeno e tem crescido muito devagar. Tem a vantagem de estimular a limpeza das florestas, em particular se for promovida a utilização de unidades de pequena produção baseadas na tecnologia da gaseificação, mas o seu contributo para aumentar rapidamente a produção renovável de energia elétrica é demasiado incerto.
A quantificação da potência renovável, a instalar, necessária para substituir a maior parte dos atuais 7GW de potência instalada não renovável, devido a uma menor rentabilidade da primeira, passa por estudos bastante complexos. No entanto, grosso modo, não andará provavelmente muito longe das duas dezenas de GW.
Dado que a eólica em terra está, entre nós, próxima da saturação e a eólica no mar envolve uma complexidade técnica e custos acrescidos, a aposta terá de ser na fotovoltaica.
Instalar uma potência fotovoltaica adicional da ordem de 20GW parece muito: de facto, temos atualmente uma potência solar centralizada inferior a 1GW e um número residual de micro e mini unidades de produção distribuída. Mas, na realidade, não é muito: há em funcionamento noutros países vários parques fotovoltaicos de mais de 1GW, e há, em Portugal, investidores interessados. Segundo o Governo, na maior parte dos lotes postos a concurso em julho deste ano houve uma dezena de candidatos por lote.
Se, por hipótese, a repartição da potência fotovoltaica adicional a instalar for repartida em partes iguais pelas duas modalidades de produção, será necessário construir todos os anos até 2030 centrais fotovoltaicas perfazendo cerca de 1GW de potência instalada (o que não se afasta muito das metas anunciadas pelo Governo) e, na modalidade de produção distribuída, será necessário instalar, até 2030, um total de 500.000 unidades de pequena produção (UPP). Para tal, bastará utilizar as coberturas de menos de 15% dos edifícios de habitação existentes em Portugal.
Isto significa instalar, em média, 50 mil UPP por ano durante dez anos, a que corresponde um investimento anual da cerca de 2,5 mil milhões de euros. Parece muito, mas não é. Comparando com a construção de habitações, note-se que em 2002, no anterior pico do setor da construção civil, foram concluídos em Portugal mais de 125 mil fogos de construção nova para habitação familiar em perto de 50 mil novos edifícios para esse fim, a que corresponde um investimento de mais de 10 mil milhões de euros, só nesse ano, realizado sobretudo pelo setor privado e financiado pelos bancos com juros bonificados à custa do erário público.
Dado que o Estado não dispõe dos recursos financeiros necessários, a implementação da produção renovável distribuída tem de ser posta em prática, tal como foi a construção de edifícios de habitação, pela iniciativa privada. As comunidades energéticas previstas pelo regime jurídico agora estabelecido são um passo positivo para conseguir tornar atrativo o investimento, mas vão levar tempo a constituir-se e a surtir efeito. Para conseguir uma verdadeira massificação da produção fotovoltaica é necessário ir mais longe, e incentivar a generalidade dos consumidores a serem também produtores, através da instalação de unidades de pequena produção com potências até 20kW.
Devido à menor escala, tal só será possível se houver a garantia dum preço mínimo ou, como aconteceu com a construção habitacional no virar do século, acesso a financiamento com juros bonificados. Por esta via, torna-se possível a uma UPP pagar-se a si própria em dez anos ou menos. A partir daí, toda a energia produzida constitui uma renda que vai reforçar o orçamento familiar do particular/promotor (dono da moradia ou condómino do prédio), melhorando as condições de habitabilidade e conforto das habitações e contribuindo para a redução da pobreza energética. Por último e não menos importante, a inerente redução do preço da energia elétrica contribuirá decisivamente para aumentar a competitividade da economia.
O acima referido requisito da capacidade de armazenamento de energia elétrica pode ser respondido desde logo pelo aumento da capacidade de produção por bombagem, adaptando para esse fim algumas das barragens existentes. Mas pode sobretudo ser conseguido através de baterias, quer domésticas, acopladas às UPP, quer dos próprios veículos elétricos, para além de várias tecnologias já disponíveis.
A preferência deve ir para a massificação das UPP, dado que a produção fotovoltaica em grandes centrais tem vários inconvenientes, desde a necessidade de construir infraestruturas e de aumentar localmente a capacidade da rede até à artificialização do solo e da paisagem e à criação de ilhas de calor.
Há, obviamente, que contar com a resistência dos interesses instalados. Para a vencer, é necessária uma forte mobilização dos cidadãos, em particular dos jovens, exigindo do Estado as medidas que permitam passar à prática.
Diz-se que o futuro da energia passa pelos três “D” de Descarbonização, Descentralização e Digitalização. Está certo, mas há que acrescentar um quarto “D”, o da Democratização da produção, de modo a que o consumidor, até agora passivo, possa ser também produtor e, em breve, armazenista de energia elétrica, mediante a ligação a uma rede elétrica inteligente. Tal evolução traduzir-se-á numa melhoria substancial da qualidade de vida e do orçamento das famílias, sobretudo das que vivem em zonas deprimidas do interior do país.
É sabido que, relativamente a outros países e regiões do planeta, os progressos conseguidos em Portugal e mesmo na Europa, embora sejam significativos, pouco contam para os resultados globais, comandados pelo que se passa na Ásia, nas Américas e nas regiões menos desenvolvidas do planeta. Portugal é atualmente responsável por menos de 0,2% e a UE28 por menos de 10% das emissões mundiais de GEE. Esta constatação não dispensa a UE nem dispensa Portugal das suas responsabilidades. Ao contrário: reforça a necessidade de todos os países adotarem medidas mais ambiciosas, e de cada um dar o seu melhor para, globalmente, se poderem reduzir os impactos das alterações climáticas sobre as condições de vida no nosso planeta.
Em Portugal, o novo regime jurídico estabelecido pelo Decreto-Lei n.º 162/2019 de 25 de outubro é um passo nesse sentido, mas é preciso ir mais longe e mais depressa, muito mais depressa. O contributo atual das fontes renováveis para o balanço anual da produção de eletricidade em Portugal é cerca de 53%, e o do fotovoltaico de uns escassos 2%. O objetivo de, em dez anos, aumentar a produção renovável de energia elétrica o suficiente para permitir dispensar a potência instalada não renovável corresponde a mais do que triplicar o objetivo do Plano Nacional Integrado Energia-Clima (PNEC 2030) e, infelizmente, a realidade dos últimos cinco anos quanto ao cumprimento deste plano não é animadora. Obviamente, tal objetivo só é possível com uma mudança radical de paradigma: total democratização da produção de energia elétrica, estimulando cada consumidor a ser também produtor, ligado a uma rede elétrica inteligente.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico