Paulo Gonçalves “dava espalhos enormes e parecia que não lhe acontecia nada”

Paulo Gonçalves morreu no Dakar aos 40 anos. Uma queda na sétima etapa foi fatal ao piloto de Esposende que espalhou fair-play pela maior competição mundial de todo-o-terreno.

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As areias da Arábia Saudita travaram de vez Paulo Gonçalves Reuters/POOL

Jorge Viegas, presidente da Federação Internacional de Motociclismo (FIM), não queria acreditar quando confirmou que Paulo Gonçalves ia mesmo iniciar o Dakar de 2019. Menos de um mês antes, o motociclista tinha sofrido uma queda grave em Portugal, durante a preparação para a prova internacional que partia esse ano da cidade sul-americana de Lima, no Peru. Foi-lhe removido o baço.

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Jorge Viegas, presidente da Federação Internacional de Motociclismo (FIM), não queria acreditar quando confirmou que Paulo Gonçalves ia mesmo iniciar o Dakar de 2019. Menos de um mês antes, o motociclista tinha sofrido uma queda grave em Portugal, durante a preparação para a prova internacional que partia esse ano da cidade sul-americana de Lima, no Peru. Foi-lhe removido o baço.

Nada que demovesse uma vontade férrea em competir na maior prova de todo-o-terreno do mundo. Após muitos “espalhos” e recuperações fantásticas, “Speedy” Gonçalves, campeão mundial de ralis de cross-country em 2013, não sobreviveu ao último acidente da sua carreira. Foi este domingo nas areias da Arábia Saudita. Completaria 41 anos no próximo dia 5 de Fevereiro.

“Vejam bem a coragem daquele homem”, salientou Viegas ao PÚBLICO, lembrando o encontro entre os dois no ano passado. “Ele estava com esperança de conseguir fazer a prova [de 2019].” Um sonho bruscamente interrompido com nova aparatosa queda na quinta etapa, que resultou num traumatismo craniano.

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As quedas fazem parte do ofício dos profissionais das duas rodas, mas o herói de Esposende ultrapassou a média. “Foi um piloto marcado pelo azar”, admitiu o presidente da FIM, que conheceu Gonçalves há 30 anos, quando era ainda um jovem talento a iniciar-se na modalidade.

“Teve quedas a velocidades bem superiores àquelas em que estaria a conduzir agora. Nós dizíamos que ele era de borracha. Como se diz em bom calão, dava espalhos enormes, mas acabava por continuar e parecia que não lhe acontecia nada. E agora teve um grande azar. Ou não e aconteceu-lhe alguma coisa antes da queda. Não se sabe.”

O acidente fatal

E o que se sabe até ao momento? David Castera, director do Dakar, fez o resumo este domingo. “Recebemos um alerta por volta das 10h [menos três horas em Portugal], primeiro por causa de uma forte desaceleração e depois por uma paragem brusca na moto de Paulo.” A organização foi averiguar, confirmando depois de que se tratava de um acidente grave ao contactar outro piloto que seguia atrás do português, o australiano Toby Price. O vencedor das edições de 2016 e 2019 permaneceu ao lado de Gonçalves até à chegada da ajuda médica.

“Pusemos em marcha o dispositivo e oito minutos depois chegou o helicóptero para intervir e tentar reanimar o Paulo. Sem êxito”, prosseguiu Castera. A equipa de resgate encontrou-o inconsciente depois de ter sofrido uma paragem cardíaca. O piloto de Esposende foi levado para o hospital onde foi confirmada morte. “São momentos muito difíceis. O Paulo já estava há muitos anos connosco, todos o conheciam e era uma figura do rali”, acrescentou.

Um acidente fatal que poderia ter sido evitado se Gonçalves tivesse confirmado a sua desistência numa das etapas iniciais, como chegou a ser anunciado. “Ele partiu o motor na terceira etapa, mas consertou-o e voltou a partir. Isto diz muito da vontade que tinha”, concluiu o responsável do Dakar.

“A verdade é que não estava na natureza dele desistir ou baixar os braços. Foi o que aconteceu também desta vez. Já estava a pensar no Dakar do próximo ano”, justificou Jorge Viegas. “Esta era a melhor maneira de treinar e conhecer melhor o material que dispunha na sua nova equipa [a indiana Hero]. Resolveu continuar e fazer bons resultados, que era o que estava a acontecer.”

Mister fair-play

A fama de Paulo Gonçalves no Dakar não se resumia à resiliência ou à capacidade extraordinária de recuperar das inúmeras quedas mais ou menos graves. Deixou igualmente o fair-play, solidariedade e companheirismo como imagens de marca. Mesmo quando as suas boas intenções não foram correspondidas por adversários de renome. Como aconteceu com Cyril Desprès, vencedor do Dakar por cinco vezes.

Na edição de 2012, o português ajudou o francês a retirar a moto de um lamaçal, acabando por ficar com a sua própria enterrada. Desprès respondeu com desprezo, partindo sem agradecer e deixando Gonçalves em dificuldades. Apesar da desilusão, o piloto português não mudou a forma de estar no desporto.

Quatro anos depois, em 2016, após Mathias Walkner ter sofrido uma queda e fracturado o fémur, Paulo Gonçalves parou para ajudar o austríaco e ali ficou até chegar ajuda. A organização da prova foi sensível ao gesto, sem penalizar o português pelo tempo perdido nessa sétima etapa, o que o levou à liderança da classificação.

O sonho de conquistar o Dakar nesse ano – depois do segundo lugar alcançado em 2015, naquela que foi a sua melhor participação - acabou por esfumar-se, mais uma vez com drama, à passagem da 11.ª etapa. Gonçalves sofreu mais uma queda, foi encontrado inconsciente e transportado de helicóptero para o hospital, onde acabaria por recuperar a consciência, sendo-lhe diagnosticado “um traumatismo craniano moderado”.

De regresso a Portugal, o piloto seria homenageado, em Novembro (2016) com o Prémio de Ética no Desporto, atribuído pelo Instituto Português do Desporto e da Juventude (IPDJ). Reforçou os seus princípios.

“Fiz aquilo que me competia [ao ajudar Walkner]. Se fosse ao contrário, acredito que fizessem o mesmo por mim. O Dakar é uma aventura de muito risco, de muito sacrifício, damos tudo por tudo ao longo de vários dias, milhares de quilómetros, e o risco está sempre à espreita. Não sou um herói, sou um ser humano com respeito pelos outros.”

A estreia acidentada

Paulo Gonçalves estreou-se no Dakar em 2006, na primeira de duas edições consecutivas que partiram de Lisboa com destino à capital senegalesa. Rui Belmonte, jornalista e amigo do piloto recordou ao PÚBLICO esta primeira vez.

“Ele caiu logo na primeira etapa em Marrocos. Destruiu bastante a moto. Mas numa demonstração de resiliência conseguiu amarrar tudo com braçadeiras de plástico, arames e com tudo o que tinha à mão, acabando por concluir essa etapa.”

Não foi fácil. Teve de fazer os 300km de uma ligação no final da especial de noite. “Ele disse-me: ‘vem atrás de mim, vem atrás de mim, eu tenho de chegar ao fim e tens de vir comigo - numa pickup - para me dar luz.” E acabaria mesmo por festejar a participação nas praias de Dakar.

Quando ele era um miúdo nos iniciados de motocross, se não ganhava as corridas ficava com umas raivas e chorava”, recordou Jorge Viegas. “Sempre teve um espírito vencedor enorme, mas também era capaz de perder tempo para ajudar outros, como o provou várias vezes ao longo da sua carreira”, lembrou.

Paulo Gonçalves não estará em mais nenhum alinhamento do Dakar e foi este domingo homenageado por todos os pilotos que participam na prova com um minuto de silêncio. A organização decidiu também cancelar a oitava das 12 etapas que compõem esta edição para motos e quads, que iria disputar-se esta segunda-feira.

“Era alguém que conhecia os riscos, era a sua paixão. Isso pode atenuar um pouco o que sentimos. Partiu a fazer o que o apaixonava, o que é um pequeno consolo. Mas é difícil de ‘engolir’ de cada vez que acontece”, comentou o veteraníssimo Stéphane Peterhansel, conhecido por “mister Dakar”, que se estreou na prova em 1988, tendo conquistado 13 troféus, seis nas motos e sete nos carros.