O “caos” na Saúde, dizem eles
Este clima atinge algo que é precioso – a relação utente ou doente com os serviços públicos e nomeadamente a relação médico-doente, que deve ir além da mera tecnocracia do diagnóstico e terapêutica.
A direita portuguesa é incapaz de auto-organizar-se mas tem competências em agitprop. É inábil e arcaica nos seus arranjos partidários, mas capaz na propaganda e manipulação da opinião, quando se trata de defender os interesses da classe que representa. Deste modo escolhe palavras-chave ou palavras de ordem, que repete liturgicamente, ritualmente, para que se transformem em “verdades”. Durante oito anos ouvimos a palavra bancarrota aplicada ao Governo de 2005-2011. E agora ouvimos a palavra caos aplicada à saúde.
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A direita portuguesa é incapaz de auto-organizar-se mas tem competências em agitprop. É inábil e arcaica nos seus arranjos partidários, mas capaz na propaganda e manipulação da opinião, quando se trata de defender os interesses da classe que representa. Deste modo escolhe palavras-chave ou palavras de ordem, que repete liturgicamente, ritualmente, para que se transformem em “verdades”. Durante oito anos ouvimos a palavra bancarrota aplicada ao Governo de 2005-2011. E agora ouvimos a palavra caos aplicada à saúde.
O uso do termo bancarrota, aplicado à crise vivida pelo nosso país a partir de 2008, insere-se num claro estilo populista. Tudo era explicado como se não houvesse uma crise mundial económica e sobretudo financeira, como se o caso Lehman Brothers dos EUA não tivesse existido, como se houvesse apenas o caso português, devido a um governo, por sinal do Partido Socialista (PS), que seria fraudulento, tinha gasto o dinheiro e ele tinha desaparecido dos bancos. As acções criminalizadas de um primeiro-ministro diabolizado eram habilidosamente sobrepostas à tal “bancarrota” do Estado numa construção causa-efeito. Diga-se de passagem que os responsáveis do PS nunca explicaram nada disto e passaram adiante por questões tácticas.
Esta campanha, organizada na base de uma palavra, abusou da credulidade de uma população que está habitual e historicamente afastada do que se passa no Mundo, que maioritariamente não lê as análises das questões internacionais e vê noticiários na televisão que dão mais tempo ao futebol do que aos problemas políticos e económicos mundiais. O terreno é esse e os que organizam o discurso bem o sabem. O “povo” ouviu o que queria ouvir: havia uma razão simples e clara para explicar as agruras que estava a passar. Chama-se a esta cena populismo.
Prevista e depois consumada a derrota política, dois outros termos chave ocuparam a propaganda: “carga fiscal” e “caos na saúde”. Várias vezes por dia, em vários meios de comunicação, nacionais e locais. Era interessante que um estudo académico quantificasse. No espectro político da direita, a Iniciativa Liberal repete-os para os mais “finos” e o Chega para o “Povo”. Quanto à “carga fiscal”, é evidente que se tivermos mais produção e menos desemprego há mais rendimento fiscal, mas isso não afecta os de menor rendimento. Não é meu propósito falar do que compete aos respectivos especialistas, embora a explicação seja acessível a todos os cidadãos, se alguém quiser e puder explicar em termos claros e meios apropriados (televisão, horas nobres, sem discurso de “economicês”).
Mas é do “caos” na saúde que aqui se trata. Quem tem um infarto de miocárdio ou um AVC e vai às urgências de um hospital e depois é internado e tratado, acha que a saúde está num “caos”? Aqueles a quem é diagnosticado um cancro e depois são seguidos e tratados nos IPO de Lisboa, Coimbra e Porto ou nos Hospitais Centrais acha que a saúde está num “caos”? Aqueles que têm diabetes e são seguidos nos hospitais ou nos Centros de Saúde em consultas especializadas, com medicamentos ou gratuitos ou de baixo preço, acham que a saúde é um “caos”?
Vou a sessões falar sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e oiço o contrário: pessoas que tiveram ou têm estas doenças e que agradecem à existência do SNS a sua situação actual. Mas também oiço as que dizem perante um problema agudo ou sub-agudo: “Vou ao privado porque dizem que o SNS está um caos”, “tenho um seguro porque dizem que o SNS está um caos”. Não vou falar desses serviços privados, porque seria outro artigo. Mas deste “caos” de que se está a falar, dizem, repetem todos os dias. Dizem os jornais em manchetes, diz a televisão, diz a Ordem dos Médicos. Este clima atinge algo que é precioso – a relação utente ou doente com os serviços públicos e nomeadamente a relação médico-doente, que deve ir além da mera tecnocracia do diagnóstico e terapêutica.
Não são estranhas a este ambiente as recentes agressões a médicos dentro do SNS. E, no entanto, O perfil da Saúde do país em 2019, relatado pela independente OCDE, diz o contrário. Diminuiu o número de mortes por causas evitáveis, o que decerto é devido ao elevado grau de vacinação de crianças e adultos com mais de 65 anos, superior à média da União Europeia (OMS/Unicef, 2018, Eurostat 2017), e as hospitalizações evitáveis, abaixo da média da UE, sugerem cuidados primários eficazes (dados relativos a 2017). Há, de facto, problemas, alguns resolúveis a curto e médio prazo, outros difíceis de resolver: o aumento da esperança de vida é um bem adquirido por parte da humanidade. Mas mais vida significa mais doenças: osteoporose, doenças cardiovasculares, cancros. Significa mais terceira idade sozinha e vulnerável: em 2017 havia quase meio milhão de pessoas maiores de 65 anos a viverem sozinhas, mais do dobro do que em 1981 (INE, Pordata); as inovações medicamentosas e os dispositivos e equipamentos clínicos aumentaram de preço em flecha; felizmente, a preocupação das pessoas em relação à saúde e à prevenção também aumentou.
E o período da crise e da troika deixou uma herança na saúde que perdura – veja-se o artigo de autores portugueses publicado em 2018 em prestigiada revista internacional, Changes in socioeconomic position among individuals with mental disorders during the economic recession in Portugal: a follow-up of the National Mental Health Survey, precedido de outro de 2016 e agora premiado com o Prémio Fundação Pulido Valente.
Mas há outra questão, a mais forte, que atravessa os países e o sistema dominante – a Saúde tornou-se um negócio. A barbárie mercantil invadiu a Saúde na Europa como foi sempre nos EUA. Os serviços de saúde entraram na lógica da mercadoria e os cuidados passaram a falar a linguagem mercantil. Passa-se em outros países da Europa o que se passa em Portugal e a causa é a mesma: os privados escolhem e captam os médicos e o dinheiro para os serviços públicos está garrotado pela política hegemónica na Europa – o mercado, a concorrência, a desigualdade de facto como motor do “desenvolvimento”.
Em França, noticia o Le Parisien de 31.12.19 que o Instituto Francês de Sangue “procura desesperadamente recrutar profissionais” porque há “colheitas de sangue acumuladas por falta de médicos”. Diz Eric Jacquot: “Tal como os hospitais, as urgências e mesmo a medicina da cidade, temos muita dificuldade em encontrar novos colegas.” E a proposta é dispensar a presença de médicos… O prof. Bernard Granger, do Hôpital Cochin, presidente do Conselho Nacional de Psiquiatria, diz que o sistema de Saúde está “ameaçado” e cita “a desconfiança em relação aos profissionais”. Segundo ele, “o garrote que nos estrangula tem que ser desapertado”. E decorre “uma greve à codificação de 1000 médicos, quase todos chefes de serviço, que simboliza a rejeição do hospital-empresa”.
Até na Suécia os governos de centro-direita privatizaram o que puderam e o actual governo eleito em 2014 e reeleito em 2019 está a tentar reverter, com dificuldade, as consequências. Quanto ao Reino Unido, já muito aconteceu durante os governos conservadores e a Escócia quer a independência sobretudo para preservar o Serviço Nacional de Saúde. Vimos por aí nos meios de comunicação social a imagem revelada pelo Guardian da criança com pneumonia deitada no chão de um hospital público inglês. Logo acorreu o populista Johnson a pedir grandes e populares desculpas à família. É claro que tem um consultor de imagem. A nossa ministra, muito competente mas muito atacada, não tem claramente consultor de imagem.