Lisboa: a resposta às perguntas “maior conquista de 2019” e “o que falta conquistar em 2020”
Os lisboetas não se reconhecem nesta cidade, da qual estão a ser expulsos de malas às costas e sem tempo para despedidas. Será que Lisboa se reconhecerá sem os lisboetas?
A revista Time Out elegeu recentemente o ‘activista’ como a figura de 2019 em Lisboa, e dedicou-lhe a capa de uma edição. Contudo, os que tenham comprado a revista pelo título encontraram afinal uma coisa muito diferente: 25 pessoas ou entidades entre as quais apenas seis – e todas arrumadas numa página – são realmente movimentos activistas de cidadãos. Os outros 19 lisboetas não são activistas, não no sentido comum e etimológico da palavra. Embora tenham na peça muito maior destaque que os activistas, são antes eleitos pelo seu trabalho nas áreas artística, cultural e até empresarial. Negócios como as lojas Maria do Mar e Carpintarias de São Lázaro, ou pessoas como Paula Amorim, presidente da Galp Energia, que ali aparece na qualidade de proprietária das lojas multimarca Fashion Clinic e do franchising Gucci, são activistas? Por mais que queiram ampliar a latitude do conceito, não são. Os próprios terão sido surpreendidos.
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A revista Time Out elegeu recentemente o ‘activista’ como a figura de 2019 em Lisboa, e dedicou-lhe a capa de uma edição. Contudo, os que tenham comprado a revista pelo título encontraram afinal uma coisa muito diferente: 25 pessoas ou entidades entre as quais apenas seis – e todas arrumadas numa página – são realmente movimentos activistas de cidadãos. Os outros 19 lisboetas não são activistas, não no sentido comum e etimológico da palavra. Embora tenham na peça muito maior destaque que os activistas, são antes eleitos pelo seu trabalho nas áreas artística, cultural e até empresarial. Negócios como as lojas Maria do Mar e Carpintarias de São Lázaro, ou pessoas como Paula Amorim, presidente da Galp Energia, que ali aparece na qualidade de proprietária das lojas multimarca Fashion Clinic e do franchising Gucci, são activistas? Por mais que queiram ampliar a latitude do conceito, não são. Os próprios terão sido surpreendidos.
Quanto aos seis movimentos activistas que a revista escolheu “celebrar”, estão na verdade todos relacionados; todos, e cada um à sua maneira, fazem frente a políticas concretas do Município de Lisboa, ou à ausência destas. Os movimentos activistas surgem quando os cidadãos deixam de se sentir representados e defendidos pelos seus governantes, e em Lisboa têm surgido organicamente por se viver um certo ‘estado de sítio’ decorrente da globalização e gentrificação. Lançaram, por exemplo, várias petições, nomeadamente contra o ruído excessivo e a poluição do ar, exigindo que a Câmara Municipal de Lisboa (CML), na qualidade de guardiã primeira dos seus munícipes, tome medidas urgentes. Colocá-los numa sopa de personalidades escolhidas avulso é obliterar a sua acção, esforço e cooperação mútua. O activismo é uma prática de apelo à mudança, de contestação, promovida individualmente ou em grupo, contra imposições e opressões económicas, sociais, culturais, religiosas e políticas. Não é uma actividade recreativa, artística e muito menos económica, não é trabalho pago e não tem fins lucrativos. O activismo é uma luta contra estados de coisas.
Nesse mesmo número, a Time Out levanta duas questões interessantes: qual a “maior conquista de 2019” e “o que falta conquistar em 2020”. Embora a revista tenha dado pouco espaço às respostas, não é difícil responder.
A “maior conquista de 2019” foi de uma pequena minoria que com propósitos estritamente capitalistas se tem desregradamente apossado da cidade, do espaço privado mas também do público, expulsando moradores, e colocando ainda mais pressão sobre os que resistem ao brutal aumento das rendas, a um quotidiano sufocado pelo turismo excessivo, pela perda da qualidade de vida, pela ineficácia dos transportes públicos, pelo barulho e pela poluição do ar.
A grande conquista foi de uma minoria que intensificou a financeirização da cidade e o seu domínio pelo capital sem regulação, especialmente o dos grandes grupos económicos. Estes, com a complacência ou apoio do Município, têm vindo a tomar conta da cidade, descaracterizando-a e destruindo o seu bem mais valioso, que é, antes de mais, a sua história e cultura, contribuindo para a sua degradação, pondo em risco a habitabilidade, a acessibilidade à habitação e a salubridade da cidade.
Quanto a 2020, esperamos que se inicie um novo caminho que tenha como meta principal a garantia da habitabilidade e qualidade de vida dos seus cidadãos, pois é urgente dar dignidade a quem vive e quer continuar a viver em Lisboa. Para isso é necessário repensar a ideologia que está por trás do ‘crescimento económico’ feito à custa das vidas dos cidadãos, assumindo e corrigindo erros, repensando e refazendo a cidade a favor da comunidade.
Numa altura em que as questões ambientais estão na ordem do dia, Lisboa entra na década com o título de “Lisboa Capital Verde Europeia 2020” – ironicamente, um dos primeiros passos foi o de espalhar bandeiras pela cidade, o que é, diga-se, muito pouco “verde”. Trata-se contudo de uma cidade onde se intensificam fontes de poluição de grande impacto: neste mesmo ano inicia-se uma grande expansão do aeroporto da Portela, que irá hipotecar durante décadas a saúde e qualidade de vida dos habitantes da cidade, intensificando a poluição sonora e do ar (e mais grave é fazê-lo sem estudo de impacto ambiental como é exigido por lei, com as autoridades a fazer vista grossa). É certo que o executivo camarário aprovou uma proposta com medidas relacionadas com os impactos do aeroporto, mas fê-lo apenas por pressão de cidadãos, e essa proposta ainda não passou de uma declaração de boas intenções, com as obras no aeroporto da Portela já em curso. Outra dessas fontes de poluição em crescendo diz respeito aos navios de cruzeiros.
Também paradigmático da bazófia que envolve a “Lisboa Capital Verde Europeia 2020” é não existir na cidade uma rede de monitorização em tempo real de ruído e poluentes, incluindo partículas finas e ultra-finas, com cobertura ampla e uma malha fina, acessível publicamente. Se esta informação existisse, os cidadãos que vivem ou trabalham na zona ribeirinha ou na zona circunvizinha ao aeroporto poderiam saber e estar conscientes, por exemplo, em que medida os navios no Terminal de Cruzeiros ou os aviões afectam a qualidade do ar que respiram e aferirem por si próprios a vacuidade ou não de tal slogan.
A CML e autoridades metropolitanas não têm agido a favor da população, nem a têm ouvido e atendido em questões fulcrais. Estas instituições não podem agir em detrimento dos seus cidadãos, que têm sido esquecidos e ficado para último sempre que são tomadas decisões de grande impacto. Quando se tomaram decisões acerca da construção do Terminal de Cruzeiros, para o qual não foi feito estudo de impacto ambiental, ou sobre a expansão do aeroporto da Portela, em que medida a vida dos lisboetas foi tomada em conta? Que outros interesses pesaram mais nesta balança? E a respeito da linha circular do Metropolitano de Lisboa, que especialistas apontam como um erro, pois irá acentuar assimetrias na cidade e não serve a população?
A CML não pode ser veículo de alimentação de uma minoria de investidores que inflacionam e controlam a economia da cidade, tornando-a num grande jogo de ‘crescimento económico’ e decrescimento da qualidade de vida, onde as vidas dos lisboetas são jogadas segundo as regras liberais de um mercado desregulado. Os lisboetas não se reconhecem nesta cidade, da qual estão a ser expulsos de malas às costas e sem tempo para despedidas. Será que Lisboa se reconhecerá sem os lisboetas?
"O que falta conquistar em 2020” é portanto que o Município de Lisboa represente e defenda os interesses e necessidades dos seus cidadãos contra a especulação imobiliária, criando regras para o turismo e agentes económicos. O que falta é que o Município de Lisboa defenda o interesse cultural de lojas e restaurantes, cinemas, teatros e espaços culturais e associativos que preservam a memória e representam o património cultural, material e imaterial da cidade, o que a diferencia de outras. O que falta é que o Município de Lisboa defenda um espaço público de todos e para todos, aumente, em tamanho e em qualidade, a rede de transportes públicos, combata seriamente a poluição sonora e do ar, tornando mais digno o quotidiano de todos, valorizando e fomentando os lugares de convívio, num ambiente saudável e de respeito por quem aqui vive e nos visita.
Quando isto acontecer, os activistas, não prescindindo da democracia participativa, podem voltar às suas vidas e dedicar-se aos seus trabalhos.