França: a face oculta da reforma do sistema de pensões
Sob uma aparência tecnicista, o que se pretende de facto com a reforma do sistema de pensões é gravar na pedra critérios de cálculo que organizam o seu depauperamento. É a filosofia de todo um sistema, considerado como um dos melhores do mundo, em que a taxa de pobreza dos reformados é das mais baixas, que se pretende assim radicalmente alterar.
Medida emblemática do programa de Emmanuel Macron, a reforma do sistema de pensões – na base do mais longo movimento de greve e de contestação social das últimas décadas em França – é a gota de água que fez transbordar o copo do descontentamento de largas camadas da população, escaldadas com sucessivas reformas organizando a sua crescente precarização, entre as quais as dos dois outros ramos, saúde e desemprego, da segurança social.
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Medida emblemática do programa de Emmanuel Macron, a reforma do sistema de pensões – na base do mais longo movimento de greve e de contestação social das últimas décadas em França – é a gota de água que fez transbordar o copo do descontentamento de largas camadas da população, escaldadas com sucessivas reformas organizando a sua crescente precarização, entre as quais as dos dois outros ramos, saúde e desemprego, da segurança social.
Nesta altura do quinquénio, poucos serão com efeito os que ainda não compreenderam que o novo mundo prometido por Macron é de facto a continuação – mas a uma velocidade inédita – do antigo mundo e que a reforma do sistema de pensões – conduzida sob os auspícios da equidade, transparência e responsabilidade (leia-se, necessidade de assegurar o equilíbrio financeiro do sistema) – constitui de facto a crónica não anunciada da sua diminuição programada.
Com efeito, sob pretexto de acabar com os 42 regimes de reforma existentes actualmente em França e, nomeadamente, os regimes especiais de que beneficiam trabalhadores das empresas e da administração públicas [1], o governo quer passar a um regime universal por pontos, em que o valor do ponto, negociado em sede de concertação social, sob controlo do parlamento, será, de facto, fixado pelo governo em função do equilíbrio das finanças públicas [2].
No contexto de políticas económicas aliando um crescimento anémico a um desemprego de massa, e da vontade do governo de manter o actual peso das despesas com reformas no PIB (13,8% em 2018) ao mesmo tempo que organiza a diminuição de recursos (não substituição de funcionários, congelamento do respectivo índice de remuneração...), o valor das pensões só pode diminuir e isto tanto mais quanto o rácio inactivos/activos deverá aumentar em cerca de 20% nos próximos anos.
O segundo factor que contribuirá para a diminuição do valor das pensões é o facto de o período de trabalho de referência para a determinação das mesmas passar a ser o conjunto da carreira contributiva, contrariamente aos actuais 25 anos mais favoráveis no sector privado ou aos seis últimos meses no sector público. É, com efeito, quase uma constante que os salários vão aumentando ao longo da carreira, e que o facto de considerar o conjunto desta contribuirá para esmagar a média.
Este esmagamento será tanto mais importante quanto se trate de trabalhadores com interrupções nos percursos profissionais, devido a contingências da vida (doença prolongada, desemprego de longa duração, trabalho parcial...) ou a normas socioculturais que devolvem às mães a educação dos filhos. Por esta razão, e porque alimentam massivamente os tempos parciais impostos e o sistema do precariado, as mulheres serão as grandes perdedoras da reforma, contrariamente às afirmações do governo de que só têm a lucrar com ela.
Enfim, terceiro e importante factor constitutivo do movimento de baixa programada das pensões, a fixação de uma idade dita de equilíbrio, que será de 64 anos, a título indicativo, em 2024, à qual estará associado um sistema de penalizações em caso de reforma antecipada (e de bónus, no caso contrário). Essa idade de equilíbrio será revista em função do aumento da esperança de vida, prevendo-se que se estabeleça em 66,25 anos para a geração de 1990 e começará a ser implementada a partir de 2022, com o acrescento de quatro meses ao ano à actual idade legal de 62 anos.
Dizer, como o governo, que a idade legal se mantém e que os activos poderão escolher o momento de se reformarem constitui o cúmulo do cinismo, sabendo que a penalização, que será de 5% ao ano, terá maior impacto nas categorias socioprofissionais com mais baixos rendimentos e percursos mais acidentados. Mas o cinismo é ainda maior quando se sabe que, hoje, metade das pessoas já não estão em actividade quando chega a idade de se reformarem e que a usura ou desgaste profissional sobrevêm bem antes desta idade nas carreiras mais penosas, as que acarretam também, na maioria dos casos, uma esperança de vida substancialmente menor.
Sob uma aparência tecnicista, o que se pretende de facto com a reforma do sistema de pensões – que nenhum problema estrutural de financiamento justifica [3] – é gravar na pedra critérios de cálculo que organizam o seu depauperamento. Valor do ponto e idade de equilíbrio serão as variáveis de ajustamento do sistema num contexto marcado pela ausência de políticas activas de emprego e a recusa de aumento dos recursos (via subida das taxas contributivas [4]) que permitam fazer face às futuras evoluções demográficas.
É a filosofia de todo um sistema, considerado como um dos melhores do mundo, em que a taxa de pobreza dos reformados é das mais baixas, que se pretende assim radicalmente alterar. Tem razão o governo ao dizer que o sistema de reforma por repartição não está em causa com a introdução do sistema por pontos. Mas a diminuição do valor da pensão que ele vai engendrar para os futuros reformados [5] vai compelir os que puderem a optar por planos de reforma por capitalização [6].
O projecto de reforma do sistema de pensões em França inscreve-se, assim, na trajectória do cumprimento do desígnio ideológico do Estado neoliberal: organizar o seu próprio saque, por forma a entregar o respectivo espólio ao capitalismo financeirizado.
[1] Os regimes ditos especiais abrangem, actualmente, apenas 1,5% da população activa
[2] Para acalmar a ira social, o governo prometeu garantir o valor do ponto. Ora, como reza o explícito título de um artigo do economista Michel Husson, “Garantir o valor do ponto não garante nada”, já que, ao afirmar que os activos terão doravante a possibilidade de escolher em que altura e com que rendimento irão para a reforma, o relatório Delevoye sobre a reforma do sistema confessa a necessidade de uma arbitragem entre idade da reforma e valor da pensão
[3] O sistema encontra-se, de facto, quase equilibrado, sendo o défice vindouro, apresentado no estudo do Alto Comissariado para as Reformas, fruto das convenções contabilísticas adoptadas, o que levou alguns a falar de défice imaginário
[4] Invocando a necessidade de preservar a competitividade da economia francesa, o governo recusa subir a taxa de quotizações, a qual se manterá nos actuais 28% em média
[5] Avalia-se na ordem dos 20%, em média, a baixa da taxa de substituição, ou seja, a relação entre o valor da pensão e o último salário auferido na vida activa
[6] De notar que o plano do governo integra a abertura à capitalização já que, pela parte do salário superior a 10.000 euros ilíquidos (contra 27.016 actualmente), os assalariados deixarão de poder descontar para o regime geral, devendo subscrever produtos de poupança-reforma sob a forma de aplicações financeiras.