A síndrome do campeão

Os meus ouvintes são sempre campeões. Sempre foram quem bateu ou maltratou alguém, ou não o fizeram apenas por terem sido uns campeões bastante misericordiosos.

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Mag Rodrigues

Como escreveu Álvaro de Campos, “nunca conheci quem tivesse levado porrada”. Este verso ocorre-me sempre que sou confrontado com pseudo-campeões das histórias que viveram, às quais não assisti, e das quais só os próprios podem atestar a veracidade de factos mirabolantes e vitoriosos. Nessas situações, costumo dizer que já levei porrada e que sou maioritariamente cobarde. Quando confrontados com a minha narrativa de perdedor, vejo-lhes o espanto fingido, como se as minhas histórias de fazer de batuque às mãos de outros fossem algo de inédito. Na escola preparatória, por exemplo, levava porrada de uma matulona que era cinturão castanho, ou lá de que cor era, do judo. Sempre que jogávamos à bola e calhava ganhar-lhe, logo era arremessado pelo campo de terra batida. E quando acontecia chover, era parabenizado com um belo enxovalho na lama.

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Como escreveu Álvaro de Campos, “nunca conheci quem tivesse levado porrada”. Este verso ocorre-me sempre que sou confrontado com pseudo-campeões das histórias que viveram, às quais não assisti, e das quais só os próprios podem atestar a veracidade de factos mirabolantes e vitoriosos. Nessas situações, costumo dizer que já levei porrada e que sou maioritariamente cobarde. Quando confrontados com a minha narrativa de perdedor, vejo-lhes o espanto fingido, como se as minhas histórias de fazer de batuque às mãos de outros fossem algo de inédito. Na escola preparatória, por exemplo, levava porrada de uma matulona que era cinturão castanho, ou lá de que cor era, do judo. Sempre que jogávamos à bola e calhava ganhar-lhe, logo era arremessado pelo campo de terra batida. E quando acontecia chover, era parabenizado com um belo enxovalho na lama.

Uma vez até perdi os óculos. Desapareceram no meio da pancadaria. Foi difícil voltar para casa sem o auxílio das duas dioptrias das lunetas, e com o fato-de-treino azul clarinho, comprado dias antes na feira dos ciganos, rasgado e desprovido da sua cor celestial. Quando a mãe me viu naquele estado lastimoso e sem óculos, assustou-se, claro. Comecei a chorar como um bebé quando a vi, e essa foi a pior parte, bastante pior do que levar porrada da matulona do judo. É que eu tinha 12 anos e ostentava as primeiras implantações de pêlo no buço, já não era um menino para me pôr a chorar à frente da mamã, percebem? Quando conto este episódio, nunca há quem me acompanhe. Os meus ouvintes são sempre campeões. Sempre foram quem bateu ou maltratou alguém, ou não o fizeram apenas por terem sido uns campeões bastante misericordiosos.

Há dias levei porrada num parque de estacionamento. Pelos vistos, o arruaceiro estava à minha frente para arrumar o carro e eu, distraído como sou, não dei conta. Estacionei a viatura, que anda a circular sem inspecção há mais de meio ano por eu ter perdido os documentos, e, ao sair do veículo, deparei-me com o tipo raivoso. Espetou-me logo um murro, para ser mais preciso no nariz, e chamou-me tudo o que são antónimos de elogios. Não me defendi, claro. Retirei a viatura do estacionamento e fui ao hospital; o nariz não parava de sangrar. Cá está, mais uma história que, se se tivesse passado com um conhecido, seria contada certamente de forma diferente. Não conheço ninguém que, ao ser agredido e enxovalhado, não tenha uma versão heróica ou vingativa sobre o que ocorre a seguir, saindo sempre vitorioso da sua narrativa.

Na realidade, há muita gente que sofre da síndrome do campeão. Enaltecem-se com factos adulterados, muitas vezes até em contextos profissionais. São todos coragem para os chefes, para os maridos ou para as mulheres, enfrentam tudo e todos com um espírito de justiça irrepreensível. E se por vezes são agressivos, é só porque não toleram a desonestidade. Eu rio-me. Se não tiver levado porrada, claro, não sou masoquista. Só gostava de conhecer outros como eu, que fossem igualmente humanos e que também tivessem levado porrada. Tenho de me contentar com a poesia, e com o Álvaro de Campos.

“Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!”