Sou médica e também já fui vítima de agressão
Também eu fui vítima de agressão, sim, dessas mesmas, agressão física, não no local de trabalho, mas quando saía de casa e me dirigia para o trabalho. Vi-me encurralada entre dois carros com um utente a agarrar-me e levantar-me a mão.
Sempre achei que ser médico era uma profissão de risco: não pelas razões mais actuais e muito antes de ser médica. Foi ainda como doente, enquanto sentada durante longas horas nas salas de espera de serviços de urgência e consultas externas, que tive esta noção. O tempo de espera dá para pensar em muita coisa, geralmente no que poderíamos estar a fazer com esse tempo. Isso se não estivermos doentes porque, no meu caso, como doente, só pensava como precisava de conversar com aquela que será para sempre a “minha médica”, uma profissional de excelência e um ser humano excepcional.
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Sempre achei que ser médico era uma profissão de risco: não pelas razões mais actuais e muito antes de ser médica. Foi ainda como doente, enquanto sentada durante longas horas nas salas de espera de serviços de urgência e consultas externas, que tive esta noção. O tempo de espera dá para pensar em muita coisa, geralmente no que poderíamos estar a fazer com esse tempo. Isso se não estivermos doentes porque, no meu caso, como doente, só pensava como precisava de conversar com aquela que será para sempre a “minha médica”, uma profissional de excelência e um ser humano excepcional.
Achei que a medicina era um risco porque lidava com pessoas e as suas vidas. As pessoas são como caixinhas de surpresas, nunca sabemos o que pode estar lá dentro, nem mesmo pelo embrulho. Geralmente, as surpresas são boas. Os médicos, com um acto (actualmente vulgarizado), podem mudar uma vida. Quase sempre para melhor, mas…
Foi depois de ser doente que, vá-se lá saber porquê, resolvi correr o risco. Eu que pensava ser professora como a minha mãe, ou investigadora, ou até bailarina, se fosse mais elegante.
Enquanto andava na universidade, entre fotocópias e apontamentos, sempre com falta de tempo para estudar, mesmo que faltasse todo o resto, nunca achei que ia conseguir chegar ao fim, não do curso, mas do seu objectivo: ser médica. Neste percurso cruzei-me com pessoas excepcionais: médicos e médicas brilhantes, enfermeiros e enfermeiras dedicados, auxiliares cuidadosos, administrativos empenhados. Todos sempre preocupados com “o outro”, pessoas admiráveis que me fizeram acreditar que era possível.
Finalmente dei o salto — teve que ser —, era (e sou) médica. Apesar de algum medo (e não, não por “esse” motivo), lá comecei a dar os primeiros passos, qual equilibrista sobre o arame, muitas vezes sem rede, na medicina. Ao fim de alguns anos, ganhei e perdi, mas, até recentemente, sempre achei que tinha ganho mais do que perdido, pelos sorrisos enternecedores à saída do gabinete, pelas primeiras vezes em que ouvi o coração de uma nova vida que se estava a formar bater, pelas crianças que vi crescer e dar os primeiros passos, pelas confidências que me confiaram, pelas gafes que deram em gargalhadas e pelos silêncios que bastaram.
Ultimamente, as desilusões, insultos e agressões têm sido em catadupa. Quase não há dia em que não surja uma “chatice”, uma reclamação, uma palavra de desrespeito. Muitos são os dias em que tenho que respirar fundo para não ser “indelicada”, em que tenho que parar para não correr para longe do Centro de Saúde. Também eu fui vítima de agressão, sim, dessas mesmas, agressão física, não no local de trabalho, mas quando saía de casa e me dirigia para o trabalho. Vi-me encurralada entre dois carros com um utente a agarrar-me e levantar-me a mão. Não foi nas instalações do Centro de Saúde, tinha que ir apresentar queixa à polícia. Não fui, talvez devesse, mas não fui. Por inércia? Por achar que não ia ter consequências?
Não, não fui por vergonha, porque tinha que ser submetida a uma perícia médico-legal, porque tinha de reviver o evento, que ainda agora recordo com a confusão e a aflição de quem foi apanhada de surpresa. Também não fui para não destruir o sonho, o sonho daquela doente que via os médicos como super-heróis (não, somos humanos), daquela jovem cuja mãe orgulhosamente dizia que estava a estudar para ser médica (porque gostaria de o ter sido), daquela médica inexperiente que o tempo faz aprender e tem feito endurecer. Este é o meu sonho, (ainda) acordo (quase) todos os dias com vontade de ir trabalhar e fazer o melhor que sei e posso para ajudar quem me (nos) procura. Quando essa vontade acabar, já não terei flexibilidade para tentar ser bailarina. Mas há sempre alternativas.
Dedico este texto aos super-heróis que fazem o SNS resistir e persistir, tornando possível o impossível: médicos, enfermeiros, auxiliares, administrativos, seguranças e utentes/doentes — porque é por eles que o SNS existe e porque aqueles que verdadeiramente precisam sabem ser pacientes, educados, até fazer-nos sorrir e acreditar que corremos o risco certo ao dedicar-nos ao SNS.