Serviço do Ramal da Lousã perdeu um terço dos passageiros em 10 anos
Canal ferroviário foi encerrado em 2010 para dar lugar a um metropolitano de superfície cuja empreitada foi interrompida. A ligação tem sido assegurada por autocarros contratados pela CP, que transportam hoje menos 337 mil pessoas que o comboio.
Mabilde Fernandes sobe os degraus. Sobe ela e sobem os sacos de plástico que carrega depois por entre o estreito corredor, até se instalar num assento encostado à janela, já a meio da viatura. De 69 anos, cabelo curto grisalho e magra figura, conta que há 44 anos que o Ramal da Lousã lhe serve de transporte para Coimbra, onde trabalha. De seguida corrige: afinal foram 34 anos pois a linha foi interrompida em Janeiro de 2010. De lá para cá, a ligação entre Coimbra e Serpins tem sido assegurada por um “serviço alternativo”, constituído por uma frota de autocarros e é dentro num desses autocarros que o PÚBLICO encontra Mabilde, no penúltimo dia de 2019.
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Mabilde Fernandes sobe os degraus. Sobe ela e sobem os sacos de plástico que carrega depois por entre o estreito corredor, até se instalar num assento encostado à janela, já a meio da viatura. De 69 anos, cabelo curto grisalho e magra figura, conta que há 44 anos que o Ramal da Lousã lhe serve de transporte para Coimbra, onde trabalha. De seguida corrige: afinal foram 34 anos pois a linha foi interrompida em Janeiro de 2010. De lá para cá, a ligação entre Coimbra e Serpins tem sido assegurada por um “serviço alternativo”, constituído por uma frota de autocarros e é dentro num desses autocarros que o PÚBLICO encontra Mabilde, no penúltimo dia de 2019.
O substituto do comboio chega a Coimbra Parque (a estação terminal do ramal, que permanece encerrada) às 17h50. Dentro dele vão cinco pessoas, mas o autocarro vai sendo preenchido à medida que atravessa o miolo da cidade, parando o mais próximo possível das antigas estações e apeadeiros, tal como fará até Serpins. É também esse o motivo que faz o autocarro consumir 1h25 desde o ponto inicial ao final do percurso.
Por estes dias escurece cedo. Dentro do veículo, as fontes de luz resumem-se a uns LED ao nível dos tornozelos e aos ecrãs dos telemóveis que vão iluminando as caras mais ou menos entediadas. Mabilde entretinha-se mais no comboio. “Gostava muito mais da automotora. Fazia renda, muita renda, e havia convívio”, recorda.
Isso deixou de ser possível com o fecho dos 35 quilómetros do centenário Ramal da Lousã. Começou em 2009, era José Sócrates primeiro-ministro e Ana Paula Vitorino a secretária de Estado dos Transportes. Numa primeira fase, em 2 de Dezembro, a circulação foi cortada entre Serpins e Miranda do Corvo. A ligação ferroviária entre Coimbra Parque e Miranda do Corvo sobreviveu pouco mais. Na noite de 3 de Janeiro de 2010, uma automotora fez a última viagem de passageiros do ramal. No dia 4, a linha foi cortada. O pretexto era instalar um metropolitano de superfície. As obras ainda arrancaram, foram construídas plataformas de estações e apeadeiros, mas seriam abortadas pouco depois, com a chegada do Inverno austero. Assim, o Sistema de Mobilidade do Mondego (SMM) hibernou.
Mabilde explica que o conforto pouco é comparável com o das automotoras, que “não abanavam tanto”. Depois há a questão da segurança. Assusta-se com “as estradas estreitas” com vista para encostas, em dias de mau tempo. Há pontos em que o cruzamento com outros veículos é um verdadeiro desafio, levando a impasses momentâneos e a manobras milimétricas. Daí que o motorista, em curvas mais apertadas, faça frequentemente sinal de luzes ou buzine para avisar que ali vai gente. Depois há a questão do tempo: “a automotora era mais rápida, tinha a linha só para ela. Este tem de contar com os outros”.
Serão estes alguns dos factores que ajudam a explicar enorme queda da procura. De acordo com números enviados pela CP ao PÚBLICO, no último ano em que esteve em funcionamento, o Ramal da Lousã transportou pouco mais de um milhão de passageiros. No ano seguinte, 2011, o primeiro dos autocarros de substituição, o número caía já para 884 mil pessoas transportadas. Chegados a 2019, o número desce ainda mais, para 675 mil (número estimado), o que significa uma perda de um terço dos passageiros em relação a 2010.
“É como pôr abaixo uma casa que precisa de obras para construir uma nova. Depois não se consegue construir e pensa-se que era melhor ter recuperado a casa”, ilustra o membro fundador do movimento Lousã pelo Ramal, Pedro Curvelo, que foi também vereador pelo PSD da autarquia local. Foi o comboio que levou pessoas que trabalhavam em Coimbra a procurar casa na Lousã e em Miranda do Corvo, tanto pelos preços mais baixos como pela qualidade de vida, descreve. “Houve muita gente que procurou essa mudança e que depois foi obrigada a fazer o circuito inverso. Deixou de ser apelativo”, lamenta.
“Já não será no meu tempo”
Entre 2010 e 2019, a soma das transferências do Orçamento do Estado para a Sociedade Metro Mondego atinge os 24 milhões de euros. E isto sem que haja ainda qualquer novo transporte que sirva as populações. Nesta conta, entram os gastos com os autocarros entre Coimbra e Serpins, apesar de o contrato com as empresas de autocarros ser celebrado com a CP, explica fonte oficial da Metro Mondego ao PÚBLICO. Em 2018, a Transdev ganhou a corrida ao serviço alternativo, num contrato em que recebe 5 milhões de euros até 2021, sucedendo à empresa VT bus.
Na lista das principais despesas da Metro Mondego entram também os encargos com o lançamento do SMM, como estudos e projectos, manutenção de infra-estruturas e edificações, remunerações dos quadros da sociedade, fornecimento de serviços externos e “actividades associadas ao licenciamento de intervenções na área de influência do canal do SMM”, enumera a mesma fonte.
Mas a história de desperdício do processo Metro Mondego não fica por aqui. Em 2016, num artigo que assinalava os 20 anos de existência da Sociedade Metro Mondego, a agência Lusa apontava para 107 milhões de euros investidos num projecto que nunca transportou um passageiro.
Helena Sequeira, de 62 anos, diz que leva mais tempo de Porto, para onde se mudou há largos anos, que da Lousã, onde nasceu. Mas continua a voltar à terra com regularidade por conta da mãe. À falta de alternativa, recorre aos autocarros de substituição. “O comboio faz muita falta”, diz, acrescentando que as pessoas dali se queixam com regularidade da falta do serviço.
Nestes dez anos, a população não se ficou pelas queixas. Organizou manifestações em Coimbra e Lisboa, boicotou eleições e assinala todos os anos o levantamento dos carris. Mas sem resultado.
Em 2017, o governo anunciou que a solução seria o metrobus, um sistema constituído por autocarros eléctricos que deverão circular na canal do defunto ramal e que assegurarão ainda a ligação à estação de Coimbra-B (em vez de ficar em Coimbra Parque, como as automotoras Allan) e que vão da beira-rio ao Hospital Pediátrico, passando pelo centro histórico. O metrobus tem o início da primeira empreitada agendado para o primeiro trimestre de 2020.
Apesar dos recentes avanços, Pedro Curvelo desconfia do metrobus. “Tememos que andem a enganar as pessoas. Quem já passou por uma, não quer passar por duas”, refere. Essa é também a postura de algumas das pessoas com quem o PÚBLICO falou na viagem entre Coimbra e Serpins. Mabilde está céptica. Afinal, “já são dez anos de promessas”. Talvez o metrobus venha a funcionar de facto, mas a experiência deixa-lhe o pé atrás. “Eu ainda gostava de ver, mas isso já não será no meu tempo”, pressagia. A sua paragem é em Moinhos, já em Miranda do Corvo. Depois de 35 minutos de autocarro, Mabilde ainda tem pela frente outros 25 minutos a pé, até chegar a casa com os sacos que traz à mão.