Década de viragem?
Talvez a força dos direitos contenha o nacionalismo, defenda a democracia e abra uma nova página no contexto internacional.
Existem razões para otimismo ou pessimismo no abrir desta nova década? A minha visão é mista: nunca a humanidade viveu melhor, mas a acumulação de riscos é preocupante. A destruição da natureza é sem dúvida o problema maior. O aumento da emissão de dióxido de carbono todos os anos, que contribui para o efeito de estufa, com o aumento médio da temperatura, derretimento do gelo nas zonas polares e subida do nível da água do mar é irrefutável. A poluição do ar e da água atingiu um nível que muitos cientistas consideram irrecuperável. A deterioração da vida submarina e o desaparecimento de espécies vegetais e animais mostram a desagregação de ecossistemas. O domínio humano sobre a natureza está a ter efeitos devastadores que põem em causa a nossa própria sobrevivência. O acordo de Paris sobre formas de combater a mudança climática foi um passo importante, embora estejamos dependentes de novas descobertas científicas para capturar o dióxido de carbono e reduzir drasticamente o impacto da nossa civilização na natureza. A justificação económica das políticas ecológicas é um elemento fundamental da estratégia de sobrevivência.
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Existem razões para otimismo ou pessimismo no abrir desta nova década? A minha visão é mista: nunca a humanidade viveu melhor, mas a acumulação de riscos é preocupante. A destruição da natureza é sem dúvida o problema maior. O aumento da emissão de dióxido de carbono todos os anos, que contribui para o efeito de estufa, com o aumento médio da temperatura, derretimento do gelo nas zonas polares e subida do nível da água do mar é irrefutável. A poluição do ar e da água atingiu um nível que muitos cientistas consideram irrecuperável. A deterioração da vida submarina e o desaparecimento de espécies vegetais e animais mostram a desagregação de ecossistemas. O domínio humano sobre a natureza está a ter efeitos devastadores que põem em causa a nossa própria sobrevivência. O acordo de Paris sobre formas de combater a mudança climática foi um passo importante, embora estejamos dependentes de novas descobertas científicas para capturar o dióxido de carbono e reduzir drasticamente o impacto da nossa civilização na natureza. A justificação económica das políticas ecológicas é um elemento fundamental da estratégia de sobrevivência.
Tão preocupante como a destruição da natureza é a ameaça real de transformação do próprio ser humano. As possibilidades de intervenção genética abrem a porta a uma mudança radical na reprodução e engenharia dos seres humanos. A antropocena pode dar lugar a um planeta pós-natureza e a uma sociedade pós-humana. Os problemas éticos estarão em cima da mesa de forma aguda. Não me parece que a inteligência artificial venha a ter um impacto de transformação radical das condições de vida nos próximos dez anos, mas a robótica poderá começar a desafiar as taxas de pleno emprego nos países mais desenvolvidos, que têm sido acompanhadas de baixa produtividade e reduzido crescimento económico. O desinvestimento das grandes empresas farmacêuticas em investigação, dados os enormes custos e duração dos testes até à aprovação de novas drogas, poderá ter consequências fatais face ao desenvolvimento de bactérias resistentes aos antibióticos atuais. No passado foram os laboratórios universitários e militares que asseguraram a maior parte da investigação: é aí que o investimento estatal tem que ser reforçado.
A guerra entre países por motivos territoriais tem tendência para diminuir, embora haja focos de tensão entre Paquistão e Índia, Rússia e Ucrânia, Arábia Saudita e Irão, Israel e países vizinhos incluindo a Palestina, China e países circundantes no Pacífico face à política de expansão das águas territoriais. A política de intervenção militar americana dificilmente poderá regressar ao que era, não só por declínio económico relativo, como também pela rutura imposta por Donald Trump. A Europa terá que contar consigo própria se quiser conter o nacionalismo russo na procura de antigas fronteiras, embora se desenhem novas alianças, com os franceses e alemães interessados numa política de compromisso. Um dos enigmas contemporâneos é justamente a despesa militar russa num país com a dimensão económica da Itália, corrupção endémica e declínio demográfico. Até quando estarão os cidadãos russos dispostos a pagar a fatura? A China tem outra capacidade económica dada a dimensão da população, um enorme mercado e um dinamismo visível no domínio tecnológico da quinta geração da rede celular digital. Contudo, será interessante observar o desenvolvimento paradoxal de um país capitalista com sistema de partido único comunista, que alia a produção privada ao controlo governamental dos bancos e das licenças operacionais de grandes conglomerados. A ideia que a censura é incompatível com a dinâmica de inovação capitalista tem ali um bom laboratório de análise. Será igualmente interessante observar a gestão chinesa de um dos maiores défices do mundo, estatal, empresarial e privado, que representa neste momento mais de 300% do Produto Nacional Bruto (dados do Institute of International Finance).
Se as guerras entre países têm tendência a diminuir, o mesmo não acontece com as guerras civis. Problemas de secessão regional poderão retornar à cena internacional, embora a situação na Europa deva ser mais benigna que noutras regiões, não vejo os europeus com vontade de morrer pela (ou contra a) nova pátria depois da devastação jugoslava. A presença islamista não deverá diminuir nos países muçulmanos de África, onde os problemas económicos subsistem e o desemprego das novas gerações é insustentável. O desespero de muitos excluídos nesse continente, dada a acumulação de problemas básicos de sobrevivência, responsável por forte emigração, poderá levar a novas guerras civis. Várias regiões da Ásia debatem-se com problemas semelhantes, sobretudo no Afeganistão, Paquistão, Bangladesh, Myanmar e Índia, embora o conflito étnico e religioso assuma diferentes contornos. Na América Latina, o protesto recente de numerosas comunidades rurais e urbanas mostra a persistência de enormes desigualdades e a emergência de formas de participação alternativas.
Apesar de tudo isto, nunca se viveu tão bem. O nível de pobreza no mundo, calculado em 42% da população total em 1981, tem vindo a baixar sistematicamente: em 2015 era de 10%. A pobreza extrema está reduzida a menos de 3% da população na Europa, Ásia Central e do Leste, e Pacífico, mas a África subsaariana concentra metade desta categoria no mundo (dados do Banco Mundial). A expectativa de vida é outro indicador de progresso na área da saúde e higiene: 72 anos em 2016, um ganho de 8 anos em relação ao ano 2000, mas com variações significativas, dos 77-78 anos nas Américas e na Europa para os 61 anos em África segundo a Organização Mundial de Saúde. Os dados sobre desigualdade mostram tendências contraditórias: enquanto a desigualdade mundial tende a diminuir, a parte das classes médias na distribuição da riqueza a aumentar, e a relação entre os três continentes do Norte a convergir (a Europa apresenta o coeficiente de desigualdade mais baixo), a desigualdade no interior dos Estados Unidos, China e Rússia tende a aumentar de forma significativa. A apropriação dos ganhos dos últimos anos pelos mais ricos não abranda: em 2018, 1% da população controlava 45% da riqueza mundial, enquanto 42 milionários detinham tanta riqueza como 50% da população mundial com mais baixos rendimentos (dados colhidos na inequality.org).
A evolução do nacionalismo na nova década será um elemento contencioso: quando atingirá o limite de expansão? A noção de direitos humanos tem vindo a conquistar espaço, informada pelos direitos económicos e sociais, bem como pelos direitos das comunidades e pela liberdade individual. As Nações Unidas têm tido um papel importante na difusão desses direitos, sobretudo no que diz respeito à erradicação da pobreza, doença, analfabetismo, guerra e desigualdade (económica, social, étnica e de género). Talvez a força dos direitos contenha o nacionalismo, defenda a democracia e abra uma nova página no contexto internacional.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico