Morreu Norberto Barroca, o encenador que não virava a cara a nenhum tipo de teatro
A sua carreira acompanhou mais de meio século de história do teatro português, durante o qual se cruzou com companhias históricas como a Casa da Comédia ou a Seiva Trupe. Tinha 82 anos.
Poucas figuras atravessaram como Norberto Barroca o teatro português dos últimos 70 anos em todas as suas encarnações, do espectáculo declaradamente popular (Um Cálice de Porto, que criou para a Seiva Trupe, foi o seu grande blockbuster, mas também se aventurou no Parque Mayer) às sinuosas construções ficcionais de um autor de vanguarda como Fernando Arrabal (teve em 1969 com Fando e Lis a sua consagração crítica), das aventuras fundadoras do teatro universitário no Portugal censurado da década de 50 a grandiosas encenações comunitárias como A Lenda de Gaia, que marcou uma fase já terminal da sua carreira, nos 12 anos, entre 1998 e 2009, em que foi director artístico do Teatro Experimental do Porto (TEP).
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Poucas figuras atravessaram como Norberto Barroca o teatro português dos últimos 70 anos em todas as suas encarnações, do espectáculo declaradamente popular (Um Cálice de Porto, que criou para a Seiva Trupe, foi o seu grande blockbuster, mas também se aventurou no Parque Mayer) às sinuosas construções ficcionais de um autor de vanguarda como Fernando Arrabal (teve em 1969 com Fando e Lis a sua consagração crítica), das aventuras fundadoras do teatro universitário no Portugal censurado da década de 50 a grandiosas encenações comunitárias como A Lenda de Gaia, que marcou uma fase já terminal da sua carreira, nos 12 anos, entre 1998 e 2009, em que foi director artístico do Teatro Experimental do Porto (TEP).
Norberto Barroca, que esta quinta-feira morreu em Lisboa, aos 82 anos, na sequência do agravamento de uma pneumonia que o mantinha hospitalizado há já várias semanas, não saiu incólume desse percurso tão diverso em que não virou a cara a nenhum tipo de teatro. “Infelizmente, creio que ele pagou o preço desses espectáculos ditos populares que fez na década de 80 com a Seiva Trupe, sucessos de bilheteira que fizeram muito pela formação de públicos e com os quais ficou irremediavelmente conotado. Os júris dos concursos do então Instituto das Artes fizeram-lhe uma perseguição permanente”, lamenta Júlio Gago, que com ele trabalhou diariamente durante 12 anos à frente do TEP. Durante esse período, recorda ao PÚBLICO, o encenador, que também foi actor, cenógrafo e figurinista (formou-se aliás como arquitecto na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa), conseguiu conciliar clássicos como Shakespeare, Ibsen e Tchékhov e temporadas recordistas (a sua montagem de Felizmente Há Luar, de Luís de Sttau Monteiro, manteve-se em cena por mais de dez anos e “ultrapassou largamente os 200 mil espectadores”). E ainda teve tempo, acrescenta Júlio Gago, para completar a tese de mestrado em História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto, sobre um tema igualmente mal amado, A Opereta em Portugal. Da ditadura militar ao Estado Novo. Preparava agora uma biografia sobre a actriz Mirita Casimiro.
Natural da Marinha Grande, onde nasceu em 1937, foi em Lisboa, quando ali rumou para estudar Arquitectura, que Norberto Barroca se iniciou no teatro. Há muito, porém, que essa era a sua “fixação”. Frequentava as mais populares salas da capital desde miúdo, por causa de uma lesão de nascença num braço que obrigava a família a deslocar-se regularmente a Lisboa para consultas médicas, contou em 2013 à revista Sinais de Cena: “Eu vinha a Lisboa ao médico (...) e como o meu pai gostava muito… Íamos ao teatro. A minha primeira memória do teatro será de 1944. Foi no Teatro Variedades, uma comédia com a Maria Matos que se chamava Os Anjinhos. Normalmente eram espectáculos ligeiros (...), entre o Parque Mayer e o Teatro Avenida. Vi o Estêvão Amarante, a Mirita Casimiro no auge da sua carreira, o Vasco Santana, o António Silva, a Irene Isidro...”.
O espectáculo que mais o fascinava nesses anos, contudo, e que para sempre o marcou, era outro, o do labor dos operários do vidro: “Cresci junto da fábrica dos Stephens, e, desde sempre me habituei a ouvir os apitos para chamar os operários (...). Todos esses sons me ficaram na memória e também os cheiros dos fumos das chaminés”, lembrava na mesma entrevista.
Foi nesses anos de formação que começou a brincar ao teatro, na cave de casa, onde montou “um palcozinho que tinha pano de boca e tudo”. A Arquitectura surgiria mais tarde como alternativa, perante a exigência familiar de uma formação académica convencional. “Não podia dizer ao meu pai que a minha finalidade era o teatro [risos]. Embora ele gostasse muito de teatro”, explicava ainda à Sinais de Cena, sublinhando como a sua prática teatral, que tantas vezes o levou a acumular as tarefas de encenador e cenógrafo, sempre foi uma experiência eminentemente espacial. As primeiras maquetes que fez, de resto, foram os teatrinhos de papel que montou na adolescência: “Fiz um teatrinho, com um caixote, e depois fazia os cenários. O Mário Viegas costumava dizer que tinha um teatrinho, mas eu também tinha. Eram as figuras que recortava do jornal, as caricaturas das peças de teatro, depois punha-lhes um arame em cima e movimentava-as.”
Após completar os estudos liceais em Lisboa, Norberto Barroca ingressou nas Belas Artes, onde se cruzou, como parecia inevitável, com o teatro universitário. Ali chegou através de colegas como Herlander Peyroteo e Manuel Amado (1938-2019), cujo pai, o encenador Fernando Amado, dirigiu entre 1952 e 1958 o Teatro Universitário de Lisboa. “No primeiro ano”, recordou às investigadoras Maria Helena Serôdio e Eunice Tudela de Azevedo na mesma entrevista da Sinais de Cena, fui ponto da peça do Almada [Negreiros], Antes de Começar, que era interpretada por dois pintores, a Lourdes Castro e o Luís Filipe Abreu”. Sucederam-lhe papéis já como actor em Óleo, de Alexandre O'Neill, e O Guarda do Túmulo, de Kafka.
Estrear-se-ia profissionalmente com o mesmo encenador, num espectáculo com que o Centro Nacional de Cultura assinalou, em 1960, o 25.º aniversário da morte de Fernando Pessoa: “Um dia, a subir o Chiado, encontrei o Fernando Amado, que me convidou a ir para o Centro Nacional de Cultura, onde ele estava a ensaiar um grupo. E eu fui (...). Deu-me um poema para eu ler. Era o Aniversário, do Álvaro de Campos. Agarrei no poema e li-o com simplicidade, muito diferente da maneira mais empolgada do Villaret, por exemplo. Gostaram e fiquei logo ‘contratado’”. E seria ainda com Amado que viveria uma aventura fundadora do teatro moderno em Portugal, a Casa da Comédia, financiada por um industrial de móveis de escritório, João Osório de Castro, que tinha uma paixão pelo teatro e dinheiro para a concretizar. Falhou o primeiro espectáculo do grupo porque estava a dar aulas de desenho em Almada, mas protagonizou o segundo, Deseja-se Mulher, de Almada Negreiros, com Manuela de Freitas, em 1963. A actriz Fernanda Lapa, que tal como Maria do Céu Guerra se estreou profissionalmente nesse espectáculo, lembrou esta tarde esse primeiro encontro com Norberto Barroca num post publicado no Facebook: “Era um Homem BOM. Foi o meu galã no Deseja-se Mulher, a minha peça de estreia na Casa da Comédia. Aí, trabalhei mais uma vez com ele e mais tarde na extinta Companhia do São Luiz. Nunca o esquecerei.”
O seu percurso voltaria a cruzar-se com o da Casa da Comédia em 1967, quando Graça Lobo o convidou para ali assinar a sua primeira encenação, As Noites Brancas, de Dostoiévski. Três anos e mais algumas encenações depois (entre as quais Fando e Lis, de Fernando Arrabal, com que ganhou um prémio da Associação de Críticos), concluía a tese de licenciatura em Arquitectura e interrompia o seu promissor trajecto no teatro para integrar um recém-criado gabinete de urbanização em Maputo (então Lourenço Marques). Mas também em Moçambique acabaria por fazer “mais teatro do que urbanização”.
Regressado a Lisboa em 1972, seria chamado, já depois do 25 de Abril, a dirigir a efémera experiência do Teatro Popular – Companhia Nacional 1, mais tarde extinta por Vasco Pulido Valente aquando da sua passagem pela Secretaria de Estado da Cultura. A década seguinte seria marcada pelos grandes sucessos de público que teve no Porto com a Seiva Trupe, companhia para a qual criou um dos grandes blockbusters da época, Um Cálice de Porto (1982). Foi uma intuição sua, diria mais tarde: “Eu queria fazer um espectáculo sobre o Porto; tinha de ser ligado ao vinho do Porto, com várias etapas da história da cidade. E tinha que ter música, e ter números entre o sério e a crítica do tipo do teatro de revista, com referências à actualidade (...). Foi um bocado difícil convencê-los a fazer o espectáculo: o António Reis aderiu logo, o Júlio Cardoso não. Ele tinha uma perspectiva diferente para a companhia e achou que isto seria uma coisa muito ligeira. Comecei a escrever. O Paulino Garcia fez a música e quis ser o pianista no espectáculo. E foi um suporte formidável. Fizemos aquilo sem dinheiro nenhum. Era tudo feito com panos. Aproveitei tudo o que havia lá nos armazéns deles.”
Os dois anos em que o espectáculo se manteve em cartaz, feito inédito, tornaram-se lendários: “Houve pessoas que viram dezenas de vezes. Houve um senhor que comprou o espectáculo para festejar o aniversário de casamento. Aquele espectáculo era só para os convidados dele. Houve um espectador que recebeu o prémio de espectador mais assíduo (...). Estava sempre esgotado. Conseguiu-se depois recuar a bancada, porque por trás ainda havia um espaço livre, que era armazém. E recuou-se a bancada, para criar mais espaço para mesas… Acho que, de algum modo, se inaugurou uma nova época e um outro modo de fazer teatro.”
Seguiram-se-lhe, na mesma linha de teatro musical para o grande público, adaptando autores como Júlio Dinis e Camilo Castelo Branco, Uma Família do Porto (1984) e Os Amorosos da Foz (1985). Depois de um reencontro com Maria do Céu Guerra, que o convidou a fazer dois espectáculos n'a Barraca (A Primeira Página e Marly, a Vampira de Ourinhos), e de uma passagem pelo Parque Mayer, voltaria ao Porto para dirigir o Teatro Experimental do Porto entre 1998 e 2009.
“O teatro português deve-lhe muito não só no sentido em que ele passou pelas principais companhias do país, mas também no sentido em que passou por todos os géneros teatrais e os dignificou. Para ele, nenhum tipo de teatro devia ser objecto de desprezo”, sublinha Júlio Gago.
O seu sonho de voltar ao primeiro espectáculo que o comoveu, o espectáculo real, duro e braçal, dos operários do vidro, ainda o pôde cumprir, em Outubro do ano passado, quando encenou uma recriação histórica da chegada à Marinha Grande do empresário Guilherme Stephens, o grande impulsionador da histórica Real Fábrica de Vidros que foi para Norberto Barroca a primeira e mais duradoura escola de teatro. Não por acaso, o seu corpo será velado esta sexta-feira no Teatro Stephens, de onde sairá no sábado para a Igreja da Marinha Grande. Após as cerimónias fúnebres, o cortejo seguirá para o cemitério da cidade, que decretou um dia de luto municipal e decidiu atribuir o nome de Norberto Barroca à galeria municipal, onde ficará depositado o espólio do actor e encenador.
Notícia actualizada às 17h09 de 3/01 para incluir informação sobre o funeral de Norberto Barroca