Dois séculos de constitucionalismo
Os duzentos anos do constitucionalismo em Portugal são oportunidade para pensar a democracia hoje, como primado da lei, legitimidade do voto, separação de poderes, liberdade igual e igualdade livre, pluralismo, laicidade, legitimidade do exercício e justiça distributiva.
Celebraremos no ano que vai começar dois séculos do que hoje designamos como Estado de direito democrático. No rigor histórico, o que ocorreu em 24 de agosto de 1820 foi uma Revolução liberal, que procurou substituir o absolutismo do Antigo Regime pela soberania popular. Nesse tempo ainda se não falava de democracia no sentido atual – Alexandre Herculano afirmava-se apenas liberal. Mas hoje a tradição iniciada em 1820 diz-se democrática e Jaime Cortesão falou dos fatores democráticos na formação de Portugal, no sentido contemporâneo.
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Celebraremos no ano que vai começar dois séculos do que hoje designamos como Estado de direito democrático. No rigor histórico, o que ocorreu em 24 de agosto de 1820 foi uma Revolução liberal, que procurou substituir o absolutismo do Antigo Regime pela soberania popular. Nesse tempo ainda se não falava de democracia no sentido atual – Alexandre Herculano afirmava-se apenas liberal. Mas hoje a tradição iniciada em 1820 diz-se democrática e Jaime Cortesão falou dos fatores democráticos na formação de Portugal, no sentido contemporâneo.
Foi essa exigência de legitimidade cidadã que determinou a convocação de eleições para a Assembleia Constituinte, que redigiria e aprovaria a nossa primeira Constituição moderna em 1822. O detonador da revolução foi a presença britânica que reduziu o Reino a uma natureza subalterna. A Inglaterra fora indispensável para preservar a independência do País perante a ameaça napoleónica, mas tornou-se opressiva e discricionária. E assim as tropas estabelecidas no Porto juntaram-se para demonstrar a sua oposição à regência que governava em nome de D. João VI, para exigir o regresso do monarca a Lisboa e confiar a uma junta governativa provisória o mandato de preparar a convocação de Cortes com vista à elaboração de uma Constituição liberal. Almeida Garrett dirá: “A última hora da tirania soou; o fanatismo que ocupava a face da terra desapareceu; o sol da liberdade brilhou no nosso horizonte, e as derradeiras trevas do despotismo foram, dissipadas por seus raios, sepultar-se no inferno.”
A revolução feita sob a invocação da “regeneração da pátria” estava na linha das revoluções britânica de 1688, americana de 1776 e francesa de 1789. Em 22 de janeiro de 1818, constituíra-se na cidade do Porto o Sinédrio, para preparar a revolução liberal, após revolta falhada de Gomes Freire e dos mártires da pátria. A ação do Sinédrio foi fundamental na preparação da Revolução vitoriosa com Manuel Fernandes Tomás, Ferreira Borges, Silva Carvalho. Para os membros do Sinédrio, a Constituição de Cádis de 1812 e o triunfo liberal em Espanha foram referências fundamentais para a concretização da revolução portuguesa.
O núcleo revolucionário era muito amplo, contando com ativistas liberais, comerciantes, militares, mas também representantes do clero ilustrado, como Frei Francisco de S. Luís, e elementos da fidalguia transmontana, como António da Silveira Pinto da Fonseca. E Silva Carvalho afirmou, num texto emblemático: “Rompeu o dia 24, e ao som dos clarins, e da artilharia se fizeram em pedaços os grilhões que nos algemavam, e com tanto sossego se proclamou a nossa independência, que ninguém sofreu o mais pequeno incómodo: imenso povo assistiu à reunião das tropas em Santo Ovídio, ouviu as proclamações, misturou-se no meio dos vivas, e da alegria com a tropa de tal maneira que quando chegaram à praça nova o contentamento era universal.”
O processo constituinte foi uma questão de honra da revolução e iniciou-se após a eleição de dezembro de 1820, em lugar das Cortes Gerais da Nação, haveria representantes dos cidadãos, numa lógica ainda censitária e não universal. A Constituição que sairia da Assembleia Constituinte, que reuniu no Palácio das Necessidades em Lisboa, poria a tónica na soberania popular, na independência e separação de poderes. Porém, o rei D. João VI chegou tarde do Brasil e daí que, à semelhança da Constituição de Cádis, se tenha consagrado um sistema que rodeava o monarca de instituições republicanas. Impunha-se o respeito pelo Estado de Direito, mas depressa se percebeu que o Executivo e o Rei possuíam poderes diminutos.
Apesar da vigência efémera da Constituição de 1822, a verdade é que foi uma longa e profícua história então se iniciou, plena de conflitos e contratempos, mas finalmente consagradora da causa da Liberdade, como ocorreria depois da Guerra Civil entre D. Pedro e D. Miguel, em Évora-Monte (1834), e finalmente no longo período iniciado em 1851, no qual antigos os opositores das guerras civis privilegiaram um acordo em que a alternância política, ao menos formal (rotativismo), se tornou uma realidade, que teve como pano de fundo o quadro importante de liberdades civis.
Os duzentos anos do constitucionalismo em Portugal são oportunidade para pensar a democracia hoje, como primado da lei, legitimidade do voto, separação de poderes, liberdade igual e igualdade livre, pluralismo, laicidade, legitimidade do exercício e justiça distributiva. Eis por que falamos de constitucionalismo como compromisso não meramente procedimental, de respeito pelos direitos e liberdades fundamentais e pela dignidade da pessoa humana e de atenção aos cidadãos. Duzentos anos são um motivo sério de alento e de partilha de ideais e valores.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico