A década em que ninguém ficou parado ao som da negritude

Na música, tanto em Portugal como no resto do mundo, a insurreição contra os modelos de dominação marcou a produção dos últimos anos. E com ela emergiram novas possibilidades e novos híbridos.

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Os Buraka Som Sistema deslocaram o centro da produção musical portuguesa, impondo-lhe influências até então periferizadas NUNO FERREIRA SANTOS

A meio da década de 2000, despontava em Portugal o projecto musical Buraka Som Sistema. As palavras então proferidas por um dos seus membros, o luso-angolano Conductor, continuam a fazer sentido hoje. Afirmava ele que muita gente resistia racionalmente à música dos Buraka – porque associava o kuduro à negritude e à pobreza – mas acabava por se entregar, emocionalmente, à fisicalidade do que a banda propunha, esquecendo “preconceitos e pudores”.

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A meio da década de 2000, despontava em Portugal o projecto musical Buraka Som Sistema. As palavras então proferidas por um dos seus membros, o luso-angolano Conductor, continuam a fazer sentido hoje. Afirmava ele que muita gente resistia racionalmente à música dos Buraka – porque associava o kuduro à negritude e à pobreza – mas acabava por se entregar, emocionalmente, à fisicalidade do que a banda propunha, esquecendo “preconceitos e pudores”.

Tinha razão. O grupo haveria de dar por encerrada a sua actividade em 2016, mas se algo pode ser dito sobre a última década é precisamente aquilo que, intuitivamente, Conductor proclamou há 15 anos e que está bem ilustrado no refrão de uma canção de um género que explodiu nas favelas brasileiras, o baile funk (no caso, um tema de DJ Malboro), onde se ouve: “É som de preto, de favelado/ mas quando toca ninguém fica parado.”

O efeito já vinha de trás, mas foi nos últimos dez anos que ganhou ainda mais sentido e mais preponderância. A década foi marcada por um conjunto de lutas (ambientais, anti-racismo, igualdade de género, LGBTQI+) que têm especificidades próprias, mas que acabam por ter como denominador comum a insurreição contra modelos de dominação, sejam eles patriarcais, neocoloniais ou neoliberais. No caso da música, até no centro do mercado se sentiu isso, com a aclamação generalizada de Beyoncé e Kendrick Lamar, ambos interrogando narrativas mitificadas da construção da nação norte-americana e amplificando a discussão sobre as injustiças raciais em que ela se fundou e funda, enquanto nas margens iam sendo criadas estimulantes possibilidades artísticas e novos híbridos.

Em Portugal, também, as segundas e as terceiras gerações de afrodescendentes chegaram-se à frente, e com elas irrompeu uma nova fornada de agentes criativos que foi capaz de criar e atribuir validade a outros imaginários e experiências até aí periferizados. A descolonização da pista de dança que os Buraka tinham iniciado prosseguiu ao som de Batida, Throes + The Shine, Scúru Fitchádu ou dos muitos nomes da editora Príncipe (Nigga Fox, DJ Marfox, Puto Tito, DJ Firmeza, Nídia), mas muitos outros sintomas de reconfiguração do espaço publico aconteceram, exponenciados, entre outros fenómenos, pelo sucesso transversal da kizomba, ou pela acção de figuras como Nástio Mosquito, Dino D’ Santiago e outros.

Esta inscrição, esta representatividade, é sem dúvida uma das marcas da década, o que não significa que as ambivalências da recepção não se façam ainda sentir. Até porque ao mesmo tempo que essa visibilidade se foi acentuando, mais bolsas reactivas foram surgindo. Mas se a música tem a capacidade de antecipar e estimular processos de metamorfose social, o caminho dos últimos anos parece sem retorno.