Enquanto houver racismo. Carta às esquerdas, por alguns dos seus

Que todos estes acontecimentos do ano de 2019 confiram um novo impulso ao combate contra o racismo, eis o que desejamos e aquilo a que este texto vem.

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LUSA/JOSé COELHO

O anti-racismo em Portugal tem uma história antiga, que nos leva, pelo menos, das lutas dos movimentos africanos que derrubaram o império colonial português até à emergência de um novo associativismo anti-racista, aquando dos assassinatos de José Carvalho e de Alcino Monteiro por grupos nacionalistas de extrema-direita, já nos anos de 1990.

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O anti-racismo em Portugal tem uma história antiga, que nos leva, pelo menos, das lutas dos movimentos africanos que derrubaram o império colonial português até à emergência de um novo associativismo anti-racista, aquando dos assassinatos de José Carvalho e de Alcino Monteiro por grupos nacionalistas de extrema-direita, já nos anos de 1990.

Mais recentemente, o combate contra o racismo ganhou novo fôlego, com a afirmação do associativismo negro de afrodescendentes, cigano e de imigrantes, sendo que o ano que agora termina marca uma viragem importante na vida pública portuguesa.

Em Janeiro de 2019, como se não mais esperassem que terceiros viessem tomar o seu partido, jovens negros da metrópole de Lisboa subiram a Avenida da Liberdade, em protesto contra uma acção policial ocorrida dias antes, no chamado bairro da Jamaica, Seixal. Seriam expulsos do centro da cidade de Lisboa por balas de borracha, mas a sua manifestação tornou visível a existência de um sujeito político colectivo até então frequentemente ignorado pela generalidade dos protagonistas políticos institucionais. 

Meses depois, em Maio, foi proferida a sentença acerca do caso da esquadra de Alfragide, com a condenação de agentes policiais por sequestro e ofensas à integridade física de habitantes do bairro da Cova da Moura. A condenação ficou aquém do que era exigido, mas o processo suscitou a mobilização de diferentes forças cidadãs nacionais, que denunciaram publicamente a persistência do racismo entre as próprias instituições estatais, desde logo, a polícia. 

Finalmente, em Outubro de 2019, três mulheres negras foram eleitas deputadas à Assembleia da República, levando ao parlamento uma agenda anti-racista plural, de que faz parte, por exemplo, a modificação da lei da nacionalidade, para que o direito à cidadania portuguesa seja atribuído a quem quer que seja que tenha nascido em território português.

Que todos estes acontecimentos do ano de 2019 confiram um novo impulso ao combate contra o racismo, eis o que desejamos e aquilo a que este texto vem, apelando-se nestas linhas ao empenhamento anti-racista de quem se filia na mesma tradição política que nós, a das esquerdas.

Rejeitamos, pois, os alertas que têm sido emitidos contra um alegado excesso de protagonismo do anti-racismo. Segundo esses alertas, tal excesso prejudicaria a atenção devida às questões económicas e sociais, como se o anti-racismo implicasse a secundarização da crítica do capitalismo e das desigualdades que este provoca. Sabemos que não é assim e entendemos até que a intervenção das esquerdas nos domínios económico-sociais tem a ganhar com uma nova centralidade política que o anti-racismo venha a alcançar.

As esquerdas que olharem para o mundo do trabalho munidas de uma perspectiva anti-racista serão capazes de melhor compreender que a economia das nossas metrópoles também se faz da exploração daqueles que vivem nas suas periferias, do Seixal a Alfragide. E, se conhecedoras das linhas de racialização que participam da divisão internacional do trabalho, as esquerdas estarão certamente melhor preparadas para intervir nas dinâmicas transnacionais e globais que fizeram e fazem o capitalismo.

O mesmo pode ser dito, acrescente-se, a respeito do feminismo. Uma esquerda que seja feminista saberá que o trabalho se organiza e é explorado de acordo com linhas divisórias de classe e étnicas, mas também de género, como as que apartam os níveis salariais de homens e mulheres ou como as linhas que circunscrevem o labor doméstico e familiar ao terreno despolitizado da condição pessoal, individual e privada.

Acrescente-se ainda que os gritos de alarme que alguns companheiros das esquerdas têm lançado contra o que chamam de “políticas identitárias” não nos convencem. Porque os riscos que têm apontado a essas políticas tanto marcam as lutas anti-racistas ou feministas como as lutas de classe. O perigo de reduzirmos a nossa leitura do mundo e a nossa intervenção na realidade a esta ou aquela temática específica não nasceu com o anti-racismo e com o feminismo, dele sendo há muito exemplo o economicismo e o determinismo classista primários que, infelizmente, marcaram a nossa própria tradição de esquerda.

Por outro lado, não poucas virtudes que as esquerdas encontram na luta de classes permeiam igualmente a política anti-racista e o feminismo. Aos olhos de uma parte do marxismo, o proletariado surge como um grupo social que, lutando para acabar com a sua própria condição de classe, igualmente lutará contra a própria divisão classista do mundo e da vida, assim constituindo-se o veículo de uma política universal. Ora, o universalismo igualmente constitui o horizonte da acção política para grande parte da luta anti-racista, a qual visa que a humanidade não mais seja espartilhada em raças, categoria cuja naturalidade tem vindo a ser destruída pela luta das próprias populações racializadas, como por exemplo a luta dos negros sul-africanos contra o apartheid; e o mesmo poderá ser dito a respeito de boa parte do feminismo e da luta LGBTI+ pela igualdade e desocultação da natureza social e historicamente construída das próprias categorias de género e orientação sexual.

Os debates que visam apurar qual o factor de poder mais importante no funcionamento das nossas sociedades – se a classe, se a “raça” ou se o género – têm, aliás, pouco interesse quando sabemos que não é por haver maior igualdade económica que deixarão necessariamente de persistir o racismo e as desigualdades de género, tal como o incremento da igualdade de género e a diminuição do racismo não trarão necessariamente consigo o fim das desigualdades económicas.

Em lugar de batalhas fratricidas opondo os que seguram a bandeira das classes trabalhadoras contra o protagonismo do anti-racismo e do feminismo, recordamos que há outras formas de “política identitária” que, essas sim, deveriam merecer a oposição de todas as esquerdas. É o caso do nacionalismo e do individualismo, que hoje por hoje se afiguram de tal maneira hegemónicos que quase ninguém chama de identitarismo aos esforços ideológicos de dirigentes partidários e analistas económicos sistematicamente empenhados em subordinar e reduzir a acção política e a vida em sociedade aos termos particularistas da identidade nacional e do interesse individual.

Por tudo isto dizemos: enquanto houver racismo, não há anti-racismo que sobre.