O “monolito” que Nuno Grande desenhou junto a São Bento divide opiniões
A edificação erguida sobre uma antiga ruína resultante da abertura da Avenida da Ponte é um desafio à relação entre a arquitectura contemporânea e o património classificado da envolvente. Não é, e dificilmente poderia ser consensual.
Num artigo recente sobre a torre que Eduardo Souto de Moura projectou para as traseiras da Estação de São Bento, Domingos Tavares, antigo director da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, assinalava que “não é pela altura” (ou cércea) de uma nova intervenção, que o respeito pelo património preexistente se mede. Há outros aspectos a ter em consideração, na hora de aprovar projectos em áreas classificadas, e, ali mesmo ao lado, no cruzamento entre a Avenida da Ponte e da Rua do Loureiro, o preenchimento de uma antiga ruína, encaixada na rocha, com um novo edifício em betão é um desafio à reflexão sobre o impacto de gestos contemporâneos numa zona carregada de história.
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Num artigo recente sobre a torre que Eduardo Souto de Moura projectou para as traseiras da Estação de São Bento, Domingos Tavares, antigo director da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, assinalava que “não é pela altura” (ou cércea) de uma nova intervenção, que o respeito pelo património preexistente se mede. Há outros aspectos a ter em consideração, na hora de aprovar projectos em áreas classificadas, e, ali mesmo ao lado, no cruzamento entre a Avenida da Ponte e da Rua do Loureiro, o preenchimento de uma antiga ruína, encaixada na rocha, com um novo edifício em betão é um desafio à reflexão sobre o impacto de gestos contemporâneos numa zona carregada de história.
O nosso tempo chegou àquele lugar – deixado em ruína após ter sido rasgada a avenida da ponte – com a assinatura de Nuno Grande, e do atelier Pedra Líquida, numa encomenda do Grupo Nelson Quintas Imobiliário – como um edifício de apartamentos turísticos, com restaurante no rés-do-chão. O uso já seria suficiente para fazer eriçar os cabelos daqueles que criticam os excessos do turismo na cidade – e o historiador da arquitectura José Pedro Tenreiro já criticara a forma como ele, o turismo, dita o que se faz, ou não, numa área que está classificada como Património da Humanidade. Mas para lá desse destino, a construção em si já vai dividindo opiniões, por muito que o autor do projecto, com toda a sua experiência em reabilitação, tenha feito uso daquele que, na sua perspectiva, “é o melhor material” para se usar no centro histórico: “o bom senso”.
Nuno Grande fez também, neste caso, uso das suas leituras, e de um conceito trabalhado pela historiadora de arquitectura francesa Françoise Choay, que inclui no designado “complexo de Noé” esta urgência contemporânea de salvar todas as marcas de um tempo anterior, de patrimonializar o passado, independentemente do seu valor. A aplicação desta tese a este lugar em concreto é controversa – e depende sempre do valor histórico atribuível à antiga ruína, famosa, para muitos que ali passavam, nem que seja pela apropriação de uma das paredes pela antiga OLIVA, que ali deixara um belo painel publicitário em azulejo.
Parede lateral sem obra de Vhils
O projecto começou por ser polémico pela intenção inicial, do promotor, de lhe associar, na parede mais próxima da estação, uma obra de Vhils, voltada para a praça fronteira. A proposta, antevista também numa simulação, e noticiada na altura pelo PÚBLICO caiu, chumbada pela Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC), que no acompanhamento a este projecto em zona classificada fez três exigências ao autor do projecto, explicou o próprio.
Segundo Nuno Grande, foi-lhe pedido que essa parede, voltada para a Avenida da Ponte, fosse deixada como estava, como marca da antiga ruína e continuidade granítica da fachada da Rua do Loureiro, integrada neste empreendimento e que foi reabilitada. Nesta, pediu-se-lhe também um remate em cornija, para uma melhor relação com os prédios da vizinhança. E na cobertura, foi utilizada telha, como em todo o casario da zona, embora, visto da rua, isso seja imperceptível.
O edifício faz jus às imagens em três dimensões que há dois anos circularam na imprensa, embora com a nuance de que o betão, bojardado para ter uma textura mais próxima da pedra, ter sido então desenhado já com uns tons acastanhados que apenas ganhará daqui a uns anos. Neste momento, nos seus tons de cinzento cimentício, o edifício acaba por se destacar mais, naquela paisagem, mesmo sendo este um projecto em que o arquitecto se faz notar pela forma como tentou diluir a sua obra no lugar: dando-lhe um aspecto de um monólito, evocativo da pedra que domina aquela encosta nascente, avenida acima, e escondendo, nos pisos superiores, os planos envidraçados.
"Mais chocante” do que uma torre em São Bento
Nada do centro histórico se reflecte naquela loggia, a parte superior do prédio, que avança um metro e meio sobre a rua, e nada nela reflecte, na aparência, o lugar onde se encontra. Porque o tempo, esse é outro, justifica o autor.
Admitindo que, com este gesto, o seu projecto acaba por ser “mais chocante” do que a torre em ferro que Eduardo Souto de Moura propõe para a lateral da estação, Nuno Grande garante que não deixou de usar algumas das escalas da cidade neste edifício, como acontece, explica, com o ritmo e dimensões dos vãos das janelas e com o recurso ao latão no revestimento de alguns elementos do piso térreo. Mas também assume que fugiu ao pastiche, à imitação do antigo, tendo em conta o estado da ruína onde o prédio se implantou, no caso da fachada voltada para a Avenida da Ponte.
“Tudo isto foi explicado ao conselho consultivo da DGPC, e eles foram compreensivos”, lembra, insistindo que tal como Marques da Silva, em São Bento, Fernando Távora, na Casa dos 24 junto à Sé, ou Nicolau Nasoni, na sua intervenção nesta Catedral, no século XVIII, não procurou, nas suas opções, esconder o tempo em que estamos. Embora, note, uma intervenção camarária, de desbaste da rocha ao lado do novo prédio, o tenha tornado mais saliente do que surgia nos seus esquiços, visto de sul.
O próprio Nuno Grande assume que “esta é uma esquina difícil. Seria difícil, a qualquer arquitecto, fazer alguma coisa consensual”. E nalgumas reacções recolhidas pelo PÚBLICO a este projecto, as opiniões dividem-se, de facto. Quem já reparou nele, como José Pedro Tenreiro, considera que ele se encaixa bem no lado voltado para a Rua do Loureiro, mas não na Avenida da Ponte, de onde, para quem desce, acaba por “tapar a vista da estação e não oferece nada em troca”. Tenreiro nota que o edifício, “solto, não é mau”, mas, tendo em conta a sua localização, contesta, por exemplo, a opção pelo betão.
Avenida “precisa de uma recomposição"
O historiador de arquitectura considera que, neste caso, a tentativa de diluir o prédio na envolvente “não funcionou”, embora até considere que o desenho da fachada voltada para a avenida de Nuno Grande “é mais interessante” do que aquilo que se recorda da proposta de há duas décadas de Siza Vieira, que no âmbito de um plano de pormenor para a Avenida da Ponte previra construções naquele mesmo espaço. Ainda assim, Tenreiro preferia o arrojo de Siza, que imaginara um edifício a cobrir a entrada da estação de metro ali existente (mexendo, neste aspecto, bem mais com as vistas para a estação, a partir de sul).
Outro historiador de arquitectura, Francisco Queiroz, lamenta principalmente que o edifício de Nuno Grande acabe por fazer o remate urbanístico de uma zona que, na sua perspectiva, precisava, mais do que isso, de um gesto de recomposição. E, como Tenreiro, recorda o projecto de Siza Vieira, que ao prever um conjunto de edifícios para aquela avenida, lhe acrescentava essa densidade que, na sua perspectiva, continua a faltar ao local. Aquele edifício “é uma clara afirmação de ruptura”, assinalou este especialista que chamou a atenção do PÚBLICO para o painel de azulejos dali retirado.
Enquanto o futuro da Avenida da Ponte é incerto - Siza Vieira explica que não tem qualquer expectativa de ver recuperado o seu plano de pormenor, o deste património azulejar é mais seguro. Está à guarda da Câmara do Porto, que admite vir a recolocá-lo num outro espaço público. Francisco Queiroz até admite que ele ficaria bem na obra de Nuno Grande, na parede cega entre a Rua do Loureiro e a avenida rasgada nos anos 40, mas deve ser outro o seu destino, pelo que explicou fonte do município.