A caixa de comentários é o mundo real
A internet mudou imenso na década que agora termina. Os tempos de inocência já lá vão.
Admitam. Quando partem para a leitura de um texto dirigem-se em primeiro lugar à caixa de comentários. Ou melhor: a única coisa que lêem são os comentários. A secção de comentários é o mundo real.
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Admitam. Quando partem para a leitura de um texto dirigem-se em primeiro lugar à caixa de comentários. Ou melhor: a única coisa que lêem são os comentários. A secção de comentários é o mundo real.
Estas frases estavam impressas numa obra exposta em Age Of You, uma magnífica exposição patente no museu de arte contemporânea de Toronto, que tive oportunidade de ver há semanas. Com curadoria do escritor Douglas Coupland, do curador Hans Ulrich Obrist e do filósofo Shumon Basar, parte de 70 contribuições de diferentes áreas artísticas, para reflectir os efeitos das mudanças tecnológicas, das redes sociais e da internet, na individualidade e na vida colectiva dos últimos tempos.
É tão estimulante quanto inquietante, espelhando afinal que a internet mudou imenso na década que agora termina. Os tempos de inocência já lá vão. O que começou como uma história de anarquia, cheia de recantos joviais, tem-se transformado num reduto dominado por interesses nem sempre claros. No passado imperava o caos, mas apesar de tudo existia a sensação, da parte do utilizador, de que era ele que sujeitava a acção.
Agora tudo se tornou difuso. A sensação de que passamos o tempo a ser induzidos predomina. Passámos de um ecossistema horizontal – com uma multiplicidade de pequenas e, muitas delas, confiáveis, comunidades – para uma realidade vertical, onde todos os nossos movimentos parecem confluir inevitavelmente para as mesmas plataformas, sejam elas a Amazon, Google, Apple, Netflix, Facebook, Instagram ou Twitter.
Claro que a internet é ainda uma aventura com imensos vazios e muitos fragmentos de universos estimulantes por desvendar. Mas a um nível mais sistémico a nossa experiência já foi capturada por interesses económicos ou políticos. Antes pensávamos que os dados e a informação individualizada que oferecíamos voluntariamente era mera transacção social. Agora sabemos que todos os nossos passos, sejam eles através de relações interpessoais ou não, acabam por ter implicações económicas, ou até sobre a saúde das democracias, como o escândalo à volta da Cambridge Analytica veio demonstrar, e como os silenciamentos de Assange, Snowden (e até Rui Pinto), por muito diversas que sejam as circunstâncias de cada um, acabam por configurar.
A idealização acabou. A internet nunca foi apenas reduto de liberdade. Nem as redes sociais meras plataformas de ligação entre pessoas. Mas isso hoje entra-nos pelos olhos adentro. Há constantes tensões, instrumentalizações, interesses comerciais, transacções de dados e outras nebulosas à espreita. O que fazer? Ter consciência disso, estar vigilante, perceber as formas de controlo mais elaboradas e subtis, sem nos deixarmos condicionar por medos, vislumbrando os limites, mas também as potencialidades e nunca desistindo de formular alternativas.
“Às vezes, nas caixas de comentários, podem estar escondidas as melhores ideias”, pode ler-se numa outra frase da exposição. É isso. Podem revelar o frívolo e o eterno, a vulgaridade, mas também projectos de sentido. Depende sempre das pessoas e das circunstâncias colectivas à sua volta. “Não vale a pena ficar horrorizado porque o mundo online substitui o mundo real”, lê-se noutra frase, embora seja discutível que assim seja. Não existe permuta, mas sim simultaneidade ou sobreposição
Nada substituiu um pão alentejano acabado de fazer. Ir para a cama sem pensar no despertador. Tirar os sapatos quando se chega a casa depois de um dia duro. Dar uma boa notícia a alguém de que se gosta olhos nos olhos. Desfrutar do silêncio ao lado de alguém que se ama. Encontrar, no bolso, uma nota perdida. Chegar a tempo mesmo quando se partiu atrasado.