Não somos Proust
O gato despertou, certamente contrariado com a melodia, e espreguiçou-se debaixo do edredão, começando a afiar as unhas no colchão, num estalar ritmado de saca-rolhas.
A pequena deitava-se cedo, embora de noite. Tinha medo do escuro, por isso, quando o pai desligava a luz e fechava a porta do quarto, e todas as formas desapareciam no denso breu, permanecia de olhos abertos o mais que conseguisse, até deixar de distinguir entre pálpebras abertas ou cerradas, uma vez que a escuridão resultava idêntica. Assim, tinha muitas vezes a convicção de ter adormecido de olhos atentos.
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A pequena deitava-se cedo, embora de noite. Tinha medo do escuro, por isso, quando o pai desligava a luz e fechava a porta do quarto, e todas as formas desapareciam no denso breu, permanecia de olhos abertos o mais que conseguisse, até deixar de distinguir entre pálpebras abertas ou cerradas, uma vez que a escuridão resultava idêntica. Assim, tinha muitas vezes a convicção de ter adormecido de olhos atentos.
No entanto, nesses escassos minutos de além-mundo, antes de se deixar levar por Morfeu, a menina concentrava-se em coisas seguras, embora invisíveis — o gato buchudo e adormecido debaixo do edredão, ou o pai, no quarto ao lado do seu, num hipnotismo de ecrãs equitativamente distribuído entre telefone e computador. Gastava grande parte do tempo agarrado a visores e a desculpar-se com urdidas preces, que, convenhamos, não passavam do nível básico de uma comunhão inventada à pressa. Quando calhava dar-se uma avaria informática e perdia horas no fracasso de resgatar algum ficheiro, orava a Proust, lamuriando-se repetidamente num inaudível “em busca do tempo perdido, em busca do tempo perdido”.
O pai também costumava pregar que “devíamos dar graças aos aparelhos e à sua autonomia, afinal, são o nosso ganha-pão”. Por isso, a menina imaginava, às vezes, como seria bom comer o telemóvel ou o computador. Imaginava-os como grandes pizzas exóticas e quadrangulares, com fatias escorrendo queijo, decoradas com azeitonas; telemóveis-tabletes de chocolate suíço, com recheio de morango, como aquele que lhe trouxera a tia que vive no estrangeiro. De súbito, a menina, como o gato, viu no escuro. Desenhada no tecto, a fluorescente, uma frase: “Não somos Proust”. “Não-somos-Proust”, soletrou baixinho a pequena, repentinamente alvoroçada. Quis chamar “pai”, tinha uma vaga memória de ter ouvido aquele nome nalguma circunstância, mas foi incapaz.
Dominada pelo sobrenatural, limitou-se a reler a frase, pianinho, até à exaustão. Rapidamente, as palavras repetidas perderam qualquer sentido, transformando-se numa melodia. “Não-somos-Proust. Não somos Proust.” Não fazia ideia do significado da frase, nem era importante. Solfejá-la dava-lhe prazer e fazia-a esquecer-se do escuro. O gato despertou, certamente contrariado com a melodia, e espreguiçou-se debaixo do edredão, começando a afiar as unhas no colchão, num estalar ritmado de saca-rolhas. Num crescente entusiasmo, a pequena foi improvisando ritmos e sons e, sem se aperceber, levantou o volume às cordas vocais, até cantar bem alto a frase que luzia tal qual néon publicitário.
O pai, espantado com a cantoria, largou os aparelhos e entrou no quarto da pequena. Ligou a luz e a frase, outrora cravada no tecto, desapareceu. A menina largou num pranto. O pai nada lhe perguntou, envolveu-a com os braços sobre o edredão. E depois compôs-lhe os cabelos com os dedos. Reparou, pela primeira vez, como cumpriam bem a tarefa de pentear a filha — os mesmos dedos que erravam, há tanto tempo, ser Proust.