Vamos falar de racismo?
Partindo do meu lugar de não-branco europeu e neto de uma avó indiana, um avô cabo-verdiano e filho de pai moçambicano, revejo-me neste “mundo nôbu”, da lusofonia e do resto do mundo.
O racismo é um não-problema em Portugal? O racismo é um problema real no resto do mundo. Nos Estados Unidos, no Brasil ou na Alemanha há segregação e extrema-direita. Aí o problema é assumido, encarado e debatido como os problemas sérios merecem ser. No país do “Eu até tenho um amigo que é...”, nem dados étnicos existem — e vai-se sussurrando, entre dentes, enquanto se varre para debaixo do tapete as evidências subtis de racismo. Paradoxalmente, o país mais africano da Europa é dono de um senhor racismo estrutural que tarda em ser assumido por quem, num agradável dia de Sol, nos vendeu o mito do bom colonizador.
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O racismo é um não-problema em Portugal? O racismo é um problema real no resto do mundo. Nos Estados Unidos, no Brasil ou na Alemanha há segregação e extrema-direita. Aí o problema é assumido, encarado e debatido como os problemas sérios merecem ser. No país do “Eu até tenho um amigo que é...”, nem dados étnicos existem — e vai-se sussurrando, entre dentes, enquanto se varre para debaixo do tapete as evidências subtis de racismo. Paradoxalmente, o país mais africano da Europa é dono de um senhor racismo estrutural que tarda em ser assumido por quem, num agradável dia de Sol, nos vendeu o mito do bom colonizador.
O português, após dançar com a sedutora morabeza cabo-verdiana, espremer a energia, outrora sibilante, dos petrodólares angolanos, adoçicar-se com a candura moçambicana, aproveitar a ingénua timidez das são-tomenses, que tantas casas desarrumadas arrumam, ou brindar a alegria canarinha e empreendedora que desenvolve o nosso país, ainda é capaz de berrar, lá do alto do seu T2: “Os negros que aqui vivem não se deveriam meter onde não são desejados”, uma sofisticada tradução do pretérito “Preto, porque não vais para a tua terra?”. Haverá alguma vitamina para curar tamanha ignorância?
Parece que sim. Há duas semanas, em plena Gulbenkian (e por falar em racismo, como seria mais pobre a nossa vida sem um britânico de origem arménia por aqui ter parado e decidido deixar-nos com um tesouro nas mãos como esta fundação?), um ex-jogador francês espalhou classe tal como fazia nos relvados. Porque a bola que rola é o mundo, Lilian Thuram provou-nos que se a escuridão é a ausência de luz, o racismo será sempre a ausência de conhecimento. Filho da Guadalupe, a ilha, ele é a real vitamina anti-racista que o mundo necessitava. Sempre foi considerado um europeu negro, sendo o jogador masculino gaulês que mais entradas em campo acumulou a cantar A Marselhesa com a mão escura sempre colocada sobre o escudo tricolor.
Partilhou a diversidade cantada por irmãos de todas as cores na selecção “black-blanc-beur”. Ao ouvi-lo em palco lembrava as arrancadas, qual locomotiva, pela lateral direita dos les bleus. De forma assertiva e eficaz, ora para fazer cruzamentos venenosos, ora para ser feliz, colocava a gola para cima, esquecia a timidez e, acreditando no seu potente remate, fazia tremer as redes de qualquer jeito. Tal como Thuram referiu, no mundo hiper competitivo do futebol há que ter bastante autoconfiança. Como conseguirá uma criança negra ter segurança em si se não se vir representada através de um referencial intelectual, um cientista ou um filósofo negro? Se for o alvo constante de piadas e menorização? Naturalmente, será mais árdua a construção da sua identidade e confiança.
Insatisfeito e de cara trancada dentro das quatro linhas, Thuram acabou como campeão do mundo (e isso é que interessa à gente, não é? E os outros?), fora delas, com o coração aberto, convenceu a mãe que afinal lhe tinha dado um mau conselho. Como faz sempre uma boa mãe, ela resmungou-lhe para esquecer a questão do racismo, pois ganhava bem e não tinha que se preocupar com isso. Ele respondeu-lhe criando a Fundação Educar o Racismo. Agora anda pelo mundo a fazer perguntas a jovens às quais os adultos nem sabem responder. Dou-vos um exemplo: veio a Lisboa questionar um jovem caucasiano (Cáucaso, essa linda região que abarca a Geórgia, Arménia ou Azerbaijão) sobre qual seria a sua cor, encostando uma folha branca à sua face. O jovem, envergonhado, ficou sem saber o que dizer. A maioria invisível apenas se riu.
Partindo do meu lugar de não-branco europeu e neto de uma avó indiana, um avô cabo-verdiano e filho de pai moçambicano, revejo-me neste “mundo nôbu”, da lusofonia e do resto do mundo. Através dele me construo na língua, na cultura e nos sons. Enriqueço-me com esta multiculturalidade que adquiro sempre que respiro e por isso a defendo fazendo as perguntas do meu tempo. Porque insistimos em contar a história num plano defensivo, dividindo o mundo “por civilizar” (os povos indígenas protegem cerca de 80% da biodiversidade do planeta) e o velho continente “civilizado”?
Haverá um espaço para o museu da descoberta ou para um memorial das vítimas do colonialismo junto ao nosso rio Tejo? Como educar o discurso intolerante, saloio que está aí a chegar? Será assim tão difícil compreender que a sedução cosmopolita do nosso país provem da mestiçagem dos diferentes povos, culturas e línguas? Será, como sempre, necessário um estrangeiro vir falar do nosso não-problema para enchermos salas, lermos livros e o encararmos? Ninguém quer ser vítima de discriminação, muito menos por algo que não pode mudar. Eu, por cá, continuarei a tomar as minhas vitaminas: viajar, ler e abraçar a diferença.