Agressões contra docentes: crime público?
O Direito Penal não resolve problemas sociais estruturais, ainda por cima quando têm inúmeras ramificações, a começar pelo péssimo traço educativo de muitas crianças e jovens a quem os educadores dão o papel de verdadeiro ditador. Ditador em casa, ditador na escola.
Nos últimos tempos, várias organizações têm defendido que as agressões contra docentes devem assumir a natureza de crime público. Não podia estar mais de acordo. Simplesmente, elas, em parte, já assim são tratadas pelo Código Penal (CP).
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Nos últimos tempos, várias organizações têm defendido que as agressões contra docentes devem assumir a natureza de crime público. Não podia estar mais de acordo. Simplesmente, elas, em parte, já assim são tratadas pelo Código Penal (CP).
Falamos do crime de ofensa à integridade física simples do art. 143.º que, para o que aqui importa, no seu n.º 1, prescreve que “quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos [mínimo de 1 mês] ou com pena de multa [entre 10 e 360 dias]”. É verdade que, como regra, este delito assume natureza semi-pública (n.º 2 do artigo) e que, logo através da Lei n.º 100/2001, de 25/8, se sentiu a necessidade de acrescentar que ele é público se cometido “contra agentes das forças de segurança, no exercício das suas funções ou por causa delas”. Porventura aqui esteja o problema de interpretação, pois habitualmente fica-se apenas pela leitura deste inciso.
Mas é essencial conjugar o art. 143.º com o art. 145.º, n.ºs 1 e 2, para perceber que, hoje, um aluno ou um encarregado de educação, p. ex., agredir um professor no exercício das suas funções ou por motivos que delas decorram merece uma tutela mais alargada. Assim, o art. 145.º trata das ofensas à integridade física qualificadas, em que a punição passa somente para pena de prisão até 4 anos, por se entender que existe “especial censurabilidade ou perversidade do agente”. E o n.º 2 do art. 145.º remete para o n.º 2 do art. 132.º, onde existem exemplos-padrão de casos em que se revela essa especial direcção de vontade. Ora, aí podemos ler, na al. l), que, se o facto for praticado contra “docente, examinador ou membro da comunidade escolar (…) no exercício das suas funções ou por causa delas”, estaremos perante uma ofensa à integridade física qualificada, que é um crime público.
Simplesmente – e aqui está o cerne do problema –, esta remissão do art. 145.º para os exemplos-padrão do art. 132.º, n.º 2 não é automática, ou seja, a agressão contra um docente ou qualquer membro da comunidade escolar (abrangendo estudantes e trabalhadores não docentes) não implica logo, por si só, que se esteja perante um delito público. Mesmo que não haja dúvidas de que um aluno bateu num professor, pode o Ministério Público (MP), numa primeira fase, e depois os juízes (de instrução ou julgamento), entenderem que as circunstâncias concretas do caso não são de molde a concluir que existe especial censurabilidade ou perversidade do agente. O que já não sucede nas agressões contra polícias, onde expressamente a lei diz que estamos em face de crimes públicos.
Em conclusão, já existe a possibilidade de o CP qualificar as agressões em meio escolar como crime público, mas, para tal, é essencial que as mesmas assumam dada gravidade que dependerá sempre de uma avaliação da autoridade judiciária competente. Donde, a pretensão é em parte justificada e, de um prisma político-criminal, também me parece que, independentemente da gravidade da agressão, deveríamos estar sempre perante um crime público, para o que bastaria, no actual n.º 2 do art. 143.º acresce, para além dos polícias, os “docentes, examinadores ou membros da comunidade escolar”.
Assumir esta natureza significa que basta que o MP tome notícia da eventual prática de um crime (por queixa, denúncia – obrigatória ou facultativa – ou por participação) para ter legitimidade para a acção penal, sem que o ofendido tenha de demonstrar expressamente vontade em tal processo. É também um sinal de maior valia protectora a um bem jurídico. Estamos ainda em face de crimes que não admitem desistência pelo ofendido, ao contrário dos semi-públicos, o que demonstra um maior interesse estatal na sua perseguição.
Outra coisa que se tem discutido é o facto de estes ofendidos não deverem ter de pagar a taxa de justiça que, no momento, é de 102 € para se constituírem como assistentes no processo e, assim, serem titulares de um conjunto de direitos muito maior que os advenientes da simples condição de ofendidos. É verdade que o Regulamento das Custas Processuais não prevê nenhuma isenção (para os polícias já o faz e bem no art. 4.º, n.º 1, al. m)) nestas hipóteses e também me parece que tal se justificaria, por o ofendido se ver forçado a recorrer à justiça penal pelo simples facto de exercer o seu trabalho. Algo de similar, obviamente com todas as distâncias, porém, as vítimas de violência doméstica – e muito bem – estão isentas do pagamento dessa taxa de justiça.
Seriam, julgo, sinais claros no sentido de o Estado não compactuar com o clima de verdadeiro terror que se vive em muitas escolas nacionais e que conheço de perto através de vários amigos que sofrem bastante com tudo isto. Mas desengane-se quem pensa que tal seria uma qualquer panaceia universal: o Penal não resolve problemas sociais estruturais, ainda por cima quando têm inúmeras ramificações, a começar pelo péssimo traço educativo de muitas crianças e jovens a quem os educadores dão o papel de verdadeiro ditador. Ditador em casa, ditador na escola. O psicólogo espanhol Javier Urra já o demonstrou de modo magistral em obra intitulada precisamente “O pequeno ditador”. Devia ser de leitura obrigatória para todos os encarregados de educação.