A guerra civil ainda queima em Moçambique
Um encenador nascido em Maputo e várias gerações de actores moçambicanos remexem na ferida mais funda do passado que têm em comum e que, dizem, continua desgraçadamente presente: Incêndios, de Wajdi Mouawad, chega agora à Culturgest, em Lisboa.
A história de Josefina Massango com a guerra civil que partiu Moçambique ao meio são várias histórias, mas ela sabe por quais começar. Houve um dia, o pior dia, em que perdeu seis pessoas da família num ataque. E houve o outro, o não tão terrível, em que o irmão, baleado num braço, teve de fazer 60 quilómetros a pé para receber assistência médica. O difícil, quando pensa nesses anos em que as violências se sucediam umas às outras, é parar de enumerar. E no entanto foi exactamente essa contenção que teve de treinar — ao lado de outros nove actores moçambicanos de várias gerações, alguns dos quais há muito na diáspora, como Alberto Magassela ou Bruno Huca — para que o espectáculo que agora chega à Culturgest, em Lisboa (esta sexta-feira às 21h; sábado às 19h), fosse capaz de provocar o silêncio profundo que é para ela a memória mais forte da noite da estreia, em Agosto, no Centro Cultural Franco-Moçambicano de Maputo.
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A história de Josefina Massango com a guerra civil que partiu Moçambique ao meio são várias histórias, mas ela sabe por quais começar. Houve um dia, o pior dia, em que perdeu seis pessoas da família num ataque. E houve o outro, o não tão terrível, em que o irmão, baleado num braço, teve de fazer 60 quilómetros a pé para receber assistência médica. O difícil, quando pensa nesses anos em que as violências se sucediam umas às outras, é parar de enumerar. E no entanto foi exactamente essa contenção que teve de treinar — ao lado de outros nove actores moçambicanos de várias gerações, alguns dos quais há muito na diáspora, como Alberto Magassela ou Bruno Huca — para que o espectáculo que agora chega à Culturgest, em Lisboa (esta sexta-feira às 21h; sábado às 19h), fosse capaz de provocar o silêncio profundo que é para ela a memória mais forte da noite da estreia, em Agosto, no Centro Cultural Franco-Moçambicano de Maputo.
Projecto pessoal do encenador Victor de Oliveira, que saiu da capital de Moçambique apenas com sete anos, empurrado pela guerra civil, e está há duas décadas radicado em Paris, Incêndios parte do texto que Wajdi Mouawad escreveu para exorcizar as suas próprias memórias de infância da Guerra do Líbano. Reencarnada em actores que directa ou indirectamente testemunharam o insanável conflito entre a Frelimo e a Renamo, esta história em que dois irmãos chamados a interpretar as últimas vontades da mãe desenterram uma tragédia de proporções edipianas passou a tocar também na ferida mais funda do país a que Victor de Oliveira voltou apenas em 2006, com uma versão de Na solidão dos campos de algodão, de Bernard-Marie Koltès, e no qual vem desde então desenvolvendo mais ou menos regularmente ateliers de formação teatral.
Fazer teatro “é outra guerra"
Ter um acervo de memórias pessoais do conflito moçambicano não foi condição para integrar o elenco, que junta uma histórica do teatro pós-independência como Ana Magaia a intérpretes recém-formados pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade Eduardo Mondlane, sem excluir a geração intermédia de Rogério Manjate ou Josefina Massango. “Mas essas memórias cruzaram-se naturalmente com o processo de criação, até porque os mais novos, ávidos de saber ‘como era’, nos solicitaram muito para completarmos os espaços que o texto deixa em branco. Eu contraceno com uma actriz que nasceu no ano em que foi assinado o acordo geral de paz [1992], era produtivo para o espectáculo que a minha experiência da guerra civil pudesse ser posta em comum. Houve alturas em que o que se passava entre quem contava e quem ouvia era tão forte que a coisa acabava em lágrimas”, conta ao PÚBLICO esta actriz que fez parte da sua carreira no Alentejo, entre o CENDREV – Centro Dramático de Évora e A Bruxa Teatro, com passagens pelo Teatro Meridional e pelo Teatro Nacional São João.
Regressada a Moçambique há dez anos, Josefina Massango diz que fazer teatro em Maputo “é outra guerra”. As portas estão fechadas, é preciso força “para as escancarar”. Espectáculos com a dimensão internacional de Incêndios, já com datas marcadas em Nantes e na Reunião, são uma raridade, e também isso fez da estreia da peça um acontecimento. Mas o que verdadeiramente mergulhou a plateia no silêncio que tanto impressionou a actriz, um silêncio bem mais longo do que os que protocolarmente, mas apenas por um minuto, os governantes moçambicanos são obrigados a guardar em datas especiais, foi a maneira como de repente uma ferida do passado se tornou tão presente e tão viva. “No dia-a-dia procuramos esquecer que passámos pela experiência da guerra civil. Dar voz a essa experiência é uma responsabilidade muito pesada para quem a carrega, exige coragem e verdade interior, mas é muito poderoso explorá-la”, acredita a actriz que com Ana Magaia (Nawal mais velha) e Sufaida Moyane (Nawal mais jovem) reparte o papel da protagonista de Incêndios.
O fogo de 15 anos que fez de Moçambique terra queimada não se apagou ainda, como as tensões (e as mortes) exacerbadas pelas recentes eleições presidenciais voltaram a lembrar. Para Josefina Massango, nunca foi tão claro: “A guerra civil não está realmente terminada; ela persiste e condena o país a muitas privações e a muitas provações. O incêndio que está no centro deste espectáculo é o nosso passado, o nosso presente e, se não tivermos cuidado, o nosso futuro.”