Dar à luz é, por enquanto, matéria de mães
As mulheres transportam os filhos, como uma carrinha de caixa fechada numa viagem que dura até nove meses, mas, mesmo depois de desembaraçada a carga, esse empreendimento especializado continua disponível por outros meios — um colo imperecível sob a luz.
A única coisa que fiz de jeito, até à data, foi ter tido a minha filha. Tudo o resto tem sido um preenchimento atabalhoado da minha cronologia. Ter filhos é, talvez, para mim, o único gesto vagamente inspirado em filantropia. E talvez não. O proveito primeiro é o de quem deu à luz e, só depois, de todos os que se cruzam ou que se vierem a cruzar com esse ser. É certo e sabido que, para as mães (e pais também), as crias são únicas e vêm carimbadas com a garantia de serem as melhores, apenas porque surgem das suas entranhas.
A verdade faz-nos mais fortes
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A única coisa que fiz de jeito, até à data, foi ter tido a minha filha. Tudo o resto tem sido um preenchimento atabalhoado da minha cronologia. Ter filhos é, talvez, para mim, o único gesto vagamente inspirado em filantropia. E talvez não. O proveito primeiro é o de quem deu à luz e, só depois, de todos os que se cruzam ou que se vierem a cruzar com esse ser. É certo e sabido que, para as mães (e pais também), as crias são únicas e vêm carimbadas com a garantia de serem as melhores, apenas porque surgem das suas entranhas.
A verdade é que só percebi que era verdadeiramente um animal quando engravidei e, mais tarde, quando amamentei pela primeira vez. Tive a certeza de ser um bicho. A minha natureza respondia sem que eu tivesse assimilado o que tinha lido em dezenas de livros. Antes de saber que estava grávida, pensei que estava perante um esgotamento nervoso — ansiedade acima da média, sugestionável, ao nível do pranto, a qualquer folha de árvore que se agitasse à minha passagem, e uma constante má disposição física, como se os alimentos ao caírem no meu estômago fossem barcos sobrevivendo ao tumulto marítimo. Decidi ir às urgências do hospital, numa manhã em que acordei particularmente zonza e maldisposta. Tomei o pequeno-almoço a custo, com uma azia inabitual e, assim que me comecei a vestir no quarto, despejei o croissant e o café com leite na alcatifa do quarto.
Estão a pensar por que raio se tem alcatifas em casa, em pleno século XXI, quando está provado que servem de ninho a milhares de bichezas nada sadias? A resposta é simples — a casa não era minha, mas de uma senhoria de idade avançada, que nem tinha dinheiro para mandar arranjar uma prioridade como o telhado do prédio. Em dias de chuva, enchia-se de água o balde num dos cantos da minha cozinha. A velhota também não tinha força nem saúde para sacudir sequer um tapete de porta, quanto mais para se lançar à empreitada de arrancar alcatifas. Mas, como eu estava a dizer, ao ver a poça de vomitado fiquei convencida de que me estava a dar uma coisa má. Chamei um táxi e pus-me a caminho do hospital particular. Felizmente, tenho um seguro de saúde que me permite ser atendida rapidamente, e com uma dignidade muitas vezes imerecida, quando vou fazer figuras tristes para as urgências.
O médico, só de olhar para mim, despistou o meu diagnóstico claramente desajustado, o que foi tranquilizador, mas bastante humilhante. Perguntou-me se não havia a possibilidade de eu estar grávida. Respondi que não, só por orgulho, nunca me ocorreu essa possibilidade. Oh, meu Deus. Sim, talvez a minha maleita fosse transportar um excesso de vida, dois corações e assim, daí a minha descomedida sensibilidade.
No fim da gravidez, a cesariana foi marcada a contragosto — queria à força ser mãe de parto natural e assim completar toda a experiência animalesca de uma gravidez. Fui sem dormir para o hospital, estava demasiado nervosa. Queria dar à luz a minha menina e tinha medo de que algo obscuro ocorresse durante a cirurgia. Anestesiada do pescoço para baixo, graças a uma epidural cavalar, o meu único receio durante a intervenção era o de entrar em pânico. Não sentia o corpo, estava ali, entregue, só tinha capacidade para pestanejar na direcção da equipa médica empoleirada na minha barriga. Quando a minha menina respirou pela primeira vez, todas as preocupações sobre mim desapareceram. Ela gritou ao sentir o ar violento de um mundo novo a corromper-lhe os pulmões e eu, só olhos e boca, fui sangue e trilhos de lágrimas e amor imediato.
As mulheres transportam os filhos, como uma carrinha de caixa fechada numa viagem que dura até nove meses, mas, mesmo depois de desembaraçada a carga, esse empreendimento especializado continua disponível por outros meios — um colo imperecível sob a luz.