O que se mexe a parar
Se quisermos ser capazes de continuar a compreender o constante movimento do fenómeno droga, temos de seguir os passos àquilo que Carlos Amaral Dias fazia tão bem.
No dia 3 de dezembro morreu Carlos Amaral Dias. Muito para além de professor universitário e de psicanalista, foi uma figura interventiva na cultura portuguesa. Tinha um talento que a comunicação social aproveitou bem: o de ser um comunicador de exceção, discorrendo num tom fluente e coloquial sobre os assuntos mais complexos, através de um pensamento capaz de unir num mesmo fio o banal quotidiano e as profundezas do nosso inconsciente, as tendências mundanas da vida social e os grandes problemas internacionais.
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No dia 3 de dezembro morreu Carlos Amaral Dias. Muito para além de professor universitário e de psicanalista, foi uma figura interventiva na cultura portuguesa. Tinha um talento que a comunicação social aproveitou bem: o de ser um comunicador de exceção, discorrendo num tom fluente e coloquial sobre os assuntos mais complexos, através de um pensamento capaz de unir num mesmo fio o banal quotidiano e as profundezas do nosso inconsciente, as tendências mundanas da vida social e os grandes problemas internacionais.
Sem nunca nos termos conhecido para além de fugazes contactos em reuniões científicas, tínhamos um interesse comum: a investigação e a intervenção no fenómeno droga. Quero em poucas linhas deixar explícito o seu contributo num campo que, no final dos anos 70 do século passado, começou a ganhar progressiva dimensão na Europa, transformando-se num dos grandes problemas sociais das últimas décadas. O seu O que se mexe a parar – estudos sobre a droga, livro publicado em 1979, é um dos primeiros trabalhos de fôlego no nosso país, saído nessa altura de uma profunda mudança de regime e ainda nada preparado para lidar com fenómenos que nos chegavam em catadupa como consequência da nossa abertura à comunidade internacional. Os textos que foi disseminando por várias publicações e as intervenções nas reuniões de especialistas marcariam o modo como equacionávamos a nossa relação com as substâncias psicoactivas. Marcar não significa produzir imediatos consensos: por vezes marca-se pelo suscitar de oposições, num jogo de ideias constitutivo da dinâmica da ciência.
A sua formação analítica não o impediu de ligar a condição psíquica dos indivíduos ao contexto sociocultural. Os consumos problemáticos de drogas começaram por ser um fenómeno essencialmente de adolescentes e jovens – as então chamadas “toxicomanias juvenis”. A par da leitura intrapsíquica, Amaral Dias ajudou a discernir as condições sociais específicas que prepararam o terreno para o desenvolvimento das toxicodependências, que adquirirão caráter epidémico nos anos 80. Fez parte de um conjunto de psicanalistas, de que avultam as figuras de Claude Olivienstein na clínica de Marmottan em Paris ou a de Jean Bergeret, que foram decisivos para a compreensão do vivido interno de quem se debatia com a sua adicção e para o consequente desenvolvimento de intervenção psicológica efetiva.
Entretanto, o fenómeno droga evoluiu em direções várias que não cabe neste pouco espaço inventariar. Os modos de explicação das condutas adictivas diversificaram-se, disciplinas científicas várias vieram dar contributos inestimáveis, o campo interventivo abriu-se a outras modalidades para além da relação clínica terapeuta-cliente, as abordagens jurídica e policial assentes no plano repressivo têm conhecido forte contestação, a regulação política das drogas tem registado mudanças, de que Portugal é aliás exemplo positivo na comunidade internacional.
Depois da crise sanitária, de segurança e de direitos civis que o modelo da “war on drugs” produziu – qual vacina que engorda o agente que quer erradicar –, urgia pragmatismo nas ações. Mas o pragmatismo interventivo, se não for mais nada do que isso, corre o risco de subalternizar, em nome da instrumentalidade e da eficácia, o plano reflexivo. Tenho não raro a impressão de que quase desistimos de pensar as drogas: uns instalados no sucesso do “modelo português”, outros espraiando o seu entusiasmo militante no envolvimento com as organizações da sociedade civil na luta pelos direitos dos utilizadores de substâncias psicoativas e pela afirmação de uma espécie de normalidade dos estados modificados de consciência.
Se quisermos ser capazes de continuar a compreender o constante movimento do fenómeno droga, temos de seguir os passos àquilo que Amaral Dias fazia tão bem: escutar-lhe o sentido para lá da sua manifestação de superfície. Porque, sob a capa de “problema social”, as drogas fazem falar o nosso tempo de contradições, de (des)encontro connosco próprios confrontados com o individualismo exacerbado, de hiper-estimulação e de hiper-consumo – afinal, o dilema em que se encerra o adicto, seja na dependência a um opiáceo, seja a um ecrã. Há apenas uma forma de agir que é eficaz: a de continuar a ser capaz de pensar, de compreender em profundidade antes de querer intervir impelido pela velocidade que acomete hoje o nosso estar coletivo. E isso Amaral Dias fazia com mestria, pondo o que se mexe a parar – para que possamos pensar antes da compulsão do agir.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico