Borba, um ano depois
O acidente de Borba não é só uma contingência geológica, é o espelho de um país que extrai valor onde não pode.
Borba, e depois? Basicamente, “aos costumes disse nada”. Mais Estado, não melhor Estado. A falta de bom Estado durante décadas, erros de décadas, não se resolvem em poucos meses com despachos a partir Lisboa. Obviamente, os empresários do setor não estão isentos de responsabilidade, as associações setoriais passam ao lado e são pouco interventivas – quando há financiamentos organizam missões às feiras, aproveita-se a oportunidade e fazem-se mais uns estudos, em cima do que já se estudou e sabe.
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Borba, e depois? Basicamente, “aos costumes disse nada”. Mais Estado, não melhor Estado. A falta de bom Estado durante décadas, erros de décadas, não se resolvem em poucos meses com despachos a partir Lisboa. Obviamente, os empresários do setor não estão isentos de responsabilidade, as associações setoriais passam ao lado e são pouco interventivas – quando há financiamentos organizam missões às feiras, aproveita-se a oportunidade e fazem-se mais uns estudos, em cima do que já se estudou e sabe.
Esta não é uma história abstrata, é uma história comum em Portugal. Desde há uns anos, os serviços regionais ficaram desprovidos de meios humanos e materiais e isso paga-se caro; os drones, a inteligência artificial ou a digitalização não resolvem tudo. Um território como a Zona dos Mármores (ZOM) tem de ter presença humana técnica todos os dias; evolui todos os dias e em todos os momentos está sujeito à contingência geológica e à decisão técnica especializada. A decisão técnica exige-se diariamente, mas não menos importante é o planeamento a médio/longo prazo – este falhou redondamente.
É aqui que sempre falhamos. Nunca faltou dinheiro para sucessivos estudos, estratégia e planeamento, ordenamento territorial e sectorial; sempre se entornaram milhões em cima da ZOM. O problema está na implementação, no pós-estudo, no acompanhamento e na monitorização. Aqui todos falharam, com o Estado na primeira linha. Durante quase três décadas investiram-se milhões no Cevalor – Centro Tecnológico da Pedra Natural de Portugal, ironicamente sediado em Borba, um espólio de equipamento e saber que, em 2016, se tornou insolvente e fechou, por “ordem” do banco que existe para nos defender (?), a Caixa Geral de Depósitos.
O acidente de Borba não é só uma contingência geológica, é o espelho de um país que extrai valor onde não pode – extinguiu serviços, não aposta no I&D e ignora quem sabe e o que por eles é relatado, baseia-se na politiquice barata. Há um conjunto de fatores humanos coletivos que foram determinantes; a estrada não se desmoronou por acaso, tal como os fogos de 2017 não aconteceram só devido às condições meteorológicas. Somos assim, conformamo-nos? E agora?
A ZOM está frágil, faltam empresários, falta bom Estado, faltam técnicos qualificados e experientes, faltam operários, falta presença, falta fazer. O mármore que ali existe é único no mundo, tem grande valor, vamos ignorá-lo? Neste período, pós acidente, temos, tardia mas satisfatoriamente, assistido a um esforço e assunção de responsabilidades dos empresários e proprietários dos prédios onde são ou já foram exploradas pedreiras, para repor condições de segurança sustentadas em estudos de avaliação das situações críticas existentes e em projetos de execução que agora urge realizar, nomeadamente pelo Estado que se propôs substituir-se aos empresários e proprietários onde estes venham a falhar.
E a estrada? Alguém escreveu um dia, com razão, apesar da “nova” circular, que “não havia como não andar por aquela estrada”. A estrada n.º 255 é uma estrada natural, como quase todas, mas esta é especial. O traçado é ainda o de pé posto, escolhido pelos povos que nos antecederam há milhares de anos. Provavelmente, já os romanos que andaram por esta abençoada terra, com água, bom solo e uma magnífica pedra branca, terão utilizado este traçado; o melhor traçado entre os lugares onde hoje são Vila Viçosa e Borba. Vila Viçosa acolhe a Padroeira de Portugal, Nossa Senhora da Conceição, e o Paço Ducal onde muitos dos nossos reis viveram; esta é, em verdade, também uma Estrada Real. Vila Viçosa, Borba e Estremoz, até Lisboa, estão ligadas por esta estrada.
Em Borba, nestas cidades, vilas e aldeias, olham-se as “placas toponímicas mais bonitas do mundo, gravadas em mármore nas paredes. A seguir, uma praça larga e o som dos paralelepípedos… não era especialmente bonita, mas era única. Aquela saída de Vila Viçosa, com muros baixos e oliveiras até chegar às pedreiras, sempre sem se poder acelerar muito e com aquele som dos paralelepípedos que já se escuta em poucos lugares.” Todos os que por ali passámos sabemos que esta estrada tem muito encanto, fascínio, é caminho entre pegadas desenhadas ao longo de séculos… Esta estrada tem tudo para continuar viva e a viver, faz falta. O cantar, quase único, dos pneus no empedrado é profundamente identitário, como o podemos dispensar, ou esquecer? Todos os calipolenses e borbenses reconhecem a sua utilidade diária.
O interesse económico para o setor das rochas ornamentais, bem como para outros, designadamente para o turismo, não pode ser ignorado. A cratera agora existente, qual cicatriz, é uma “dor” geral, quotidiana, emocional, social, cultural e económica. Já alguma entidade pública, nacional ou regional, se preocupou em calcular o prejuízo, para todos, por a 255 estar interrompida?
Muito para além do trágico acidente, esta estrada merece ser viva e vivida; não temos o direito de privar os vindouros deste caminho, tão natural e magnífico como o mármore, e identitário porque construído de pedra, solo e clima, de cultura e memórias. Até pela memória dos que naquelas pedreiras padeceram ao longo de décadas é incontornável reconstruir a histórica estrada de Borba-Vila Viçosa.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico