Porque é um erro insistir no encerramento de Coimbra-A em 2019
A estação no centro da cidade concentra 90% de todo o tráfego ferroviário urbano e regional e serve cerca de 9000 passageiros diários.
Em 1885, numa altura em que Coimbra era confinada às zonas da Alta e Baixa, construiu-se uma ligação ferroviária que permitia que os comboios que circulavam na rede ferroviária nacional terminassem o seu percurso no centro da cidade.
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Em 1885, numa altura em que Coimbra era confinada às zonas da Alta e Baixa, construiu-se uma ligação ferroviária que permitia que os comboios que circulavam na rede ferroviária nacional terminassem o seu percurso no centro da cidade.
Aquela que é hoje conhecida como a ligação entre as estações Coimbra-A, na Baixa junto ao rio, e Coimbra-B, junto à Mata do Choupal, foi o primeiro troço do Ramal da Lousã, que tinha inicialmente 1,7 km. Em 1906 o ramal chega finalmente àquela vila, estendendo-se por mais 29 km, e assim funcionou por mais cem anos.
Em 1984, a massificação do automóvel privado levou à interdição da circulação do comboio no Largo da Portagem, ficando o ramal dividido em dois troços: o urbano, de Coimbra-A a Coimbra-B, e o troço suburbano, de Coimbra-Parque a Lousã/Serpins. Em 1994 deu-se início ao processo que previa substituir o comboio por um metro-ligeiro de superfície, e só em 2010, embora contra a vontade de uma parte da população, começaram finalmente as obras. Três anos volvidos, e após terem sido retirados os carris do troço suburbano, o projecto foi cancelado por causa da crise financeira. Devido ao faseamento das obras, o comboio continuou, felizmente, a circular no troço urbano.
Entretanto, nos últimos dez anos, apesar de não haver nem comboio nem metro para a Lousã, o curso do país continuou e a situação nacional alterou-se. Devido ao aumento do preço dos combustíveis, ao aumento do número de turistas e à redução do custo dos passes intermodais, o transporte ferroviário de passageiros tem vindo a crescer a uma taxa impressionante de 7% ao ano (p10). Tudo indica que este processo tenderá a aumentar, uma vez que a União Europeia tem vindo a impor continuamente restrições ao tráfego automóvel e aéreo, e a sociedade civil tem tomado consciência das alterações climáticas, resultando numa mudança de hábitos de consumo e de mobilidade.
Este conjunto de factores seriam suficientes para reequacionar a decisão de substituir o comboio da estação de Coimbra-A por um metro-ligeiro há dez anos, mas fazem ainda mais sentido hoje, quando se propõe substituir o comboio não por metro-ligeiro mas, pasme-se, por autocarros. As estimativas de procura foram entretanto revistas em baixa e o projecto foi reformulado na totalidade com o objectivo de alcançar a viabilidade financeira. As estações Universidade e Arcos do Jardim, que anteriormente previam servir o Pólo I universitário, foram eliminadas, assim como os túneis de Celas e dos Hospitais. O nome Metro-Mondego (MM) caiu e deu lugar ao Sistema de Mobilidade do Mondego (SMM), ou, como lhe chama o executivo, metro-bus. Com todas estas alterações prevê-se que o custo de construção do SMM seja reduzido a 1/3 do custo inicial do MM.
Ora, se os pressupostos iniciais do projecto (traçado, veículos, estimativas de procura, financiamento, bem como a conjuntura nacional) se alteraram completamente, porque não foi reavaliada a decisão de desactivar a ligação ferroviária a Coimbra-A? Uma vez que o novo SMM assenta numa solução sobre asfalto, com veículos mais pequenos e flexíveis, não poderão os dois sistemas coexistir, complementando-se?
Vamos aos dados: esta ligação ferroviária de 1,7 km que se quer desactivar é o troço com maior procura do antigo ramal com quase 9000 passageiros diários (p5). Serve, na sua curta distância, mais de metade dos passageiros previstos para todo o planeado SMM, nos seus 42 km e 16.000 passageiros diários.
Dividindo o número de passageiros pelo número de quilómetros percebe-se facilmente a disparidade de passageiros transportados por cada um dos sistemas e, consequentemente, a razão do executivo querer absorver os passageiros da ligação ferroviária, procurando financiar a restante rede deficitária do SMM.
Mas acabando com a ligação ferroviária, não é de todo garantido que os passageiros troquem o comboio pelo metro-bus. É que o factor que torna esta ligação tão atractiva é o facto de permitir que 90% de todos os comboios urbanos e regionais da região de Coimbra terminem o seu percurso no centro da cidade. Isto quer dizer que as populações de Figueira da Foz, Aveiro, Mealhada, Pombal, entre outras, usam diariamente esta ligação para chegar directamente a áreas e serviços como a Baixa, Largo da Portagem ou a Loja do Cidadão.
Isto prova que, como ensinam as boas práticas de planeamento de transportes, o transporte público é tão mais atractivo quanto mais perto e rápido chegar ao seu destino. Para entender este facto, os conimbricenses podem tomar como exemplo a estação ferroviária da Figueira da Foz, que dista igualmente cerca de 1,6 km da marginal junto ao mar. Tendo a oportunidade de chegar de comboio directamente à praia, sem ser necessário caminhar ou apanhar um autocarro, como acontece hoje em dia, quantas pessoas da zona de Coimbra prefeririam deixar o carro em casa?
Ter uma estação ferroviária que leva os passageiros directamente ao centro da cidade é um luxo que muitas cidades europeias se podem orgulhar de ter, e que algumas cidades portuguesas se arrependem de ter perdido. Coimbra tem a sorte de ter uma — inaugurada em 1931 e projectada pelos arquitectos Cottinelli Telmo e Luís Cunha — que é a mais dignificante porta de entrada da cidade. Se o turismo é hoje encarado como um activo de importância nacional, fará também sentido prescindir desta ligação privilegiada ao centro do Património da Unesco?
O executivo da Câmara Municipal de Coimbra (CMC) insiste que esta estação não serve os interesses dos conimbricenses, porque a maioria desloca-se de automóvel até Coimbra-B para apanhar os serviços Alfa ou Intercidades. Mas o executivo esquece que Coimbra está inserida numa rede multi-polar que se chama Região do Baixo Mondego. Apesar de a cidade ter vindo continuamente a perder população, escala e importância, ainda mantém alguns serviços e ligação ferroviária directa que lhe permite ser um centro de influência regional.
Esta noção de escala regional é a razão que leva o Porto e Lisboa a manterem as suas estações no centro da cidade. Ninguém ousaria desactivar as estações de São Bento, Santa Apolónia ou Cais do Sodré, obrigando todos os passageiros dos serviços urbanos e regionais a fazer um transbordo para um metro-bus nas estações de Campanhã, Gare do Oriente ou Alcântara, respectivamente. Se desmantelar uma linha renovada e electrificada parecia ser já uma proposta extemporânea em 2019, os responsáveis políticos com voto nesta questão aparentam não estar em sintonia.
Por um lado, temos o executivo da CMC, que quer a todo o custo ter um “metro”, nem que para isso tenha que ter o sufixo bus. A Infraestruturas de Portugal (IP), empresa gestora do ramal e promotora do metro-bus, referencia no Diretório da Rede de 2021 (a sua principal ferramenta de planeamento anual) a ligação de Coimbra-A como “linha estruturante de maior procura e valor” (p130), atribuindo-lhe a primeira das três categorias de importância existentes. A Comboios de Portugal (CP) recusa ceder os dados de tráfego alegando que “não se enquadra na informação divulgada pela Empresa”. Por outro lado, temos o ministro das Infraestruturas e Habitação, que, apesar de defender, e bem, que “A ferrovia – hei-de repeti-lo até à exaustão! – é mesmo o futuro”, e que “Só vamos conseguir combater a falta de espaço se as pessoas chegarem à cidade de comboio. Ao centro da cidade”, ainda não se pronunciou sobre este caso.
Todas estas contradições apenas demonstram que todo este processo está a ser conduzido de uma forma pouco transparente, acelerada e, acima de tudo, pouco participada. Antes de escrever este artigo, submeti todos estes dados à Consulta Pública do Estudo de Impacte Ambiental disponível online desde final de Agosto até ao início de Setembro. Não tendo recebido qualquer resposta, reencaminhei em Outubro o texto para o: ministro das Infraestruturas e Habitação, ministro do Ambiente, presidente da CMC e vereadores, presidente da IP e presidente do SMM, tendo apenas recebido resposta do último e de um vereador independente. O presidente do SMM garantiu que a desactivação do ramal ferroviário foi decidida juntamente com a Administração Central e executivo da CMC, e que qualquer alteração de traçado iria atrasar a entrada em serviço do sistema, uma vez que o projecto de execução já se encontra aprovado.
De facto, o presidente da CMC está seriamente empenhado em ter as obras o mais adiantadas possível nas próximas eleições. O MM deu lugar ao SMM não só por uma razão financeira, mas, acima de tudo, política — depois de 25 anos e mais de 100 milhões de euros gastos (p8), não vai haver metro e os comboios vão deixar de chegar ao centro da cidade. Como esta decisão é sobretudo política, qualquer visão diferente da planeada é desde logo descartada. Os dois meios de transporte podem perfeitamente coexistir, bastando para isso adoptar a variante da Avenida Fernão de Magalhães — opção já apresentada, aliás, em reunião da CMC — deslocando o traçado do metro-bus para um canal dedicado a construir nesta avenida.
No futuro, quaisquer alterações ao SMM e ao plano de reabilitação da frente de rio (que continua a só poder ser consultado presencialmente mediante marcação prévia) deverão ser públicas, escrutinadas e participadas. O que está aqui em causa não é só o desperdício de recursos e de meios de transporte, mas, sobretudo, a democracia.