Dióspiro de perdição

Parece improvável, sim, mas eu já vi diospireiros fazerem coisas espantosas.

Foto
Casa de Camilo, em São Miguel de Seide, Vila Nova de Famalicão Nelson Garrido

Confesso aqui um crime: roubei um dióspiro da Casa de Camilo, em São Miguel de Seide, Vila Nova de Famalicão. Que me perdoe a funcionária que teve a gentileza de nos guiar e contar a vida do escritor entrecortada com passagens dos seus livros, que citou de cor. Mencionou as serranias circundantes, o postigo onde Ana Plácido ia fumar para saber as novas da aldeia, os campos ao redor. Não falou do diospireiro, fiquei sem saber se ele já existia no tempo de Camilo.

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Confesso aqui um crime: roubei um dióspiro da Casa de Camilo, em São Miguel de Seide, Vila Nova de Famalicão. Que me perdoe a funcionária que teve a gentileza de nos guiar e contar a vida do escritor entrecortada com passagens dos seus livros, que citou de cor. Mencionou as serranias circundantes, o postigo onde Ana Plácido ia fumar para saber as novas da aldeia, os campos ao redor. Não falou do diospireiro, fiquei sem saber se ele já existia no tempo de Camilo.

Parece improvável, sim, mas eu já vi diospireiros fazerem coisas espantosas. Conheço um, no sopé da Serra da Estrela, que tendo já levado vida longa de boa produção, ficou aquebrantado há meia dúzia de anos por via de um raio que lhe caiu em cima. O pobre ficou praticamente rachado em duas metades, mas era Outono e estava carregadinho. Não se podia simplesmente cortar a rama periclitante, onde havia muitos dióspiros por amadurecer. Espetaram-se uns paus na terra e aguentou-se a árvore.

O diospireiro mutilado ainda se debateu uns tempos entre a vida e a morte naquela esquisita posição de ramas desavindas. Levou a melhor sobre o raio que o partira. A racha cerziu-se, a árvore pôs-se de novo em pé e cresceram novas ramadas. Está hoje maior do que nunca e deu uma boa centena de dióspiros este ano.

Portanto, quem sabe?, o dióspiro que roubei de Seide pode muito bem ser parente distante dos dióspiros que Camilo via da janela do quarto e que, porventura, até comia nos longos e frios Outonos daquele sítio inóspito. Ponho-me a pensar se já haveria dióspiros em Portugal na época de Camilo, mas a net não ajuda — fica, se mais nada, a fantasia.

O meu crime processou-se da seguinte forma. Ao atravessar o portão da propriedade deparei-me com uma longa alameda empedrada e coberta por videiras murchas. De ambos os lados desse corredor há terra e algumas árvores. Do lado esquerdo fica uma pequena reentrância no muro, a tal namoradeira que a amada de Camilo frequentava. Também à esquerda, mas mais à frente, fica a casa amarela, com dois pisos, breve escadaria que liga logo ao primeiro andar, um arco de acesso à adega, janelas de guilhotina com caixilharia branca e moldura vermelha.

Em frente à casa fica um pedaço de terreno generoso. Estava despido. A excepção era aquele diospireiro que naquele dia se assemelhava a uma árvore de Natal, despido totalmente de folhas mas com os frutos viçosos. As folhas caídas faziam manto no chão em redor da árvore. Lá pelo meio havia alguns dióspiros esborrachados. Mas este não: a cor de laranja pálida denunciava bem que estava verde, apto a ser apanhado e levado para sítio mais soalheiro e depois degustado como deve ser, talvez com uma pitada de canela (mas só me falaram deste truque mais tarde).

O sítio parecia deserto. Já que não dava para visitar a casa, ao menos levava um recuerdo de Seide. Foi assim que pensei. Meti o dióspiro ao bolso no exacto momento em que a porta da adega se abriu e revelou que o sítio não estava deserto. Decorria uma visita guiada que tinha começado pela sala onde estão pendurados desenhos alusivos ao Amor de Perdição. Percorri as salas com aquele peso no casaco, mas não na consciência.

Bem sei que esta minha descrição é realismo a mais para o gosto de Camilo, que aparentemente sofreu horrores para escrever sobre um relógio que está na sala. Descreveu-o exaustivamente, até ao mais ínfimo pormenor, só para ganhar uma aposta em como conseguia imitar o estilo desses realistas, Eça à cabeça, que tantos idolatravam e ele desdenhava.

O meu objectivo não é o mesmo. Nem sei se o tenho, aliás. Mas tenho uma moral para concluir esta história, o que calha sempre bem. Não comi aquele dióspiro. Abandonei-o em fruteira de outrem e esqueci-me da sua existência até já ser demasiado tarde. Senti isto como uma pequena vingança camiliana. Afinal, sempre me inclinei mais para os realistas em desprimor dos românticos. Perder o deleite de comer aquele dióspiro furtado foi o fim trágico e poético que Camilo teria certamente escrito para este conto.