A regionalização continua morta
No momento em que está em negociação o Orçamento do Estado para 2020 (...), jornalistas, comentadores e políticos têm-se ocupado com discussões laterais.
Por razões que desconheço, que podem ir da pura ignorância à deliberada má-fé, no debate político tem-se arrastado uma discussão larvar que confunde presunto com toucinho. Falo da confusão, explícita ou implícita, entre o que é regionalização, a criação de patamares intermédios de poder político democraticamente legitimado pelo voto directo dos eleitores, e o que é descentralização ou desconcentração de serviços do Estado central, em graus diversos, transferidos para órgãos de poder local ou regional, eleitos ou não.
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Por razões que desconheço, que podem ir da pura ignorância à deliberada má-fé, no debate político tem-se arrastado uma discussão larvar que confunde presunto com toucinho. Falo da confusão, explícita ou implícita, entre o que é regionalização, a criação de patamares intermédios de poder político democraticamente legitimado pelo voto directo dos eleitores, e o que é descentralização ou desconcentração de serviços do Estado central, em graus diversos, transferidos para órgãos de poder local ou regional, eleitos ou não.
O país divide-se entre os que são a favor da criação de um patamar de poder democraticamente eleito intermédio, entre o Estado central e o poder local, constituído por regiões administrativas, senhoras de governos próprio, legitimados pelo voto – um passo que tem obrigatoriamente de ser dado através de referendo, como determina a Constituição – e aqueles que se lhe opõem. A querela já foi testada em referendo, em 1998, e o resultado foi o chumbo da então lei da criação das regiões administrativas, com 60,87% dos eleitores a rejeitarem o projecto que tinha sido aprovada pela Assembleia da República – acrescente-se que mais de metade dos eleitores nem se deram ao trabalho de sair de casa e a abstenção foi de 51,88%.
Entre os que se opõem à regionalização e à criação de governos regionais democraticamente legitimados há os que defendem que a alternativa é a da desconcentração de serviços do Estado central transferidos para os municípios e para órgão não democraticamente eleitos como as comissões intermunicipais (CIM), as áreas metropolitanas e as comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional (CCDR).
Coloco-me entre os que são contra a regionalização. Não por considerar que aumenta a despesa pública, nem sequer pela inevitável multiplicação de cargos de ocupantes de lugares de poder político eleitos. Para mim, a questão prévia tem que ver com a centralidade política do Estado democraticamente legitimada e o seu esfarelamento em níveis intermédios, num país que não tem diversidade e particularismos étnico-culturais a gerir. Seria uma reforma do sistema político português que criaria governos regionais com um grau de autonomia política em relação ao governo nacional, potenciando tensões paralisadoras do Estado.
Considero, sim, importante a desconcentração ou mesmo a descentralização de serviços do Estado central para o poder local ou para as entidades intermunicipais ou regionais, para assegurar a proximidade da gestão de serviços públicos das populações e quebrando a macrocefalia do Terreiro do Paço. Uma câmara municipal, por exemplo, resolve mais depressa a falta de pessoal auxiliar numa escola ou a execução de obras num centro de saúde do que um ministério instalado em Lisboa. E este caminho, frise-se, tem sido o escolhido pelo PS e pelos governos de António Costa, estando em curso a primeira fase da transferência de competências para os municípios e prevista, para 2020, o início da desconcentração de serviços para as CCDR, CIM e as áreas metropolitanas.
Sendo a discussão legítima e tendo ambos os lados argumentação, razões sólidas e válidas, não deixo de ficar perplexa por esta discussão renascer periodicamente com um objectivo que só posso compreender como destinado a baralhar e desviar o debate político dos temas realmente centrais no país.
No momento em que está em negociação o Orçamento do Estado para 2020, um documento essencial para o futuro e no qual terão de ficar plasmadas as novas orientações e a prioridade de aposta na recuperação dos serviços públicos – prometida pelo líder do PS e primeiro-ministro, António Costa, no programa eleitoral e na campanha –, jornalistas, comentadores e políticos têm-se ocupado com discussões laterais.
Dos autarcas – primeiro o Congresso da Associação Nacional de Municípios, depois um debate entre os presidentes das câmaras de Lisboa e Porto – ao Presidente da República, passando pelo CDS e pelo PCP, falou-se da iminência da regionalização como ela fosse possível na actual legislatura. A verdade é que nenhum programa eleitoral dos principais partidos a prevê e a regionalização, durante alguns anos, estará morta e enterrada. Pelo menos, no mandato de António Costa como primeiro-ministro, pois não consta das propostas que levou a votação. Mas também enquanto Marcelo Rebelo de Sousa for Presidente da República. É sabido que a ela se opõe, desde que em 1998, como presidente do PSD, liderou a campanha pelo não à regionalização e venceu o referendo. O único efeito prático foi ter ficado clarificado que o PS abandona a proposta eleitoral, de 2015, da eleição directa dos presidentes das áreas metropolitanas.
Só por deliberada má-fé ou por ignorância crassa sobre o que está em causa e o que distingue regionalização de descentralização e desconcentração se pode continuar a ressuscitar um fantasma que está morto e enterrado desde 1998. Não seria mais útil ao país discutir o que verdadeiramente interessa para a vida das pessoas nos dias de hoje?