No Bangladesh, as mulheres começam a “ganhar asas”
Made in Bangladesh não é um documentário, é um filme-denúncia. Expõe tanto a precariedade do trabalho nas fábricas têxteis como a luta das mulheres pela emancipação. No Bangladesh, as duas realidades são uma só. O filme estreia-se esta quinta-feira nas salas portuguesas.
Shimu tem 23 anos. Fugiu de casa aos 12 porque os pais a queriam casar com um homem de 40 anos. Começou por trabalhar numa fábrica de sapatos, mas o odor dos químicos era insuportável. Conseguiu trabalho numa fábrica têxtil em Daca e é por uma máquina de costura — e pelo som violento que dela sai — que começa o filme. De seguida, vemos mulheres, centenas de mulheres, que atrás das máquinas cosem tecido vermelho que será uma T-shirt. Todos os dias, na fábrica onde Shimu trabalha, são produzidas 1650 T-shirts. Depois da China, o Bangladesh é o segundo maior fabricante têxtil do mundo, mas o crescimento do país fez-se alavancado numa indústria com fortes debilidades. Os trabalhadores têxteis bengalis estão entre os mais mal pagos do mundo (muitos não ganham o suficiente para pagar alimentação e renda de casa) e a derrocada do edifício Rana Plaza em 2013, que matou mais de mil trabalhadores e feriu outros 2500, revelou mundialmente as más condições laborais vividas nas fábricas onde se produzem milhões de peças de vestuário para as grandes marcas de fast fashion do Ocidente, cujo modelo de negócio assenta na produção em massa e a baixo custo. “Com o Rana Plaza toda a gente teve de reparar no que estava a acontecer. Até os trabalhadores perceberam que tinham de lutar pelos seus direitos”, explica ao PÚBLICO a realizadora Rubaiyat Hossain.
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Shimu tem 23 anos. Fugiu de casa aos 12 porque os pais a queriam casar com um homem de 40 anos. Começou por trabalhar numa fábrica de sapatos, mas o odor dos químicos era insuportável. Conseguiu trabalho numa fábrica têxtil em Daca e é por uma máquina de costura — e pelo som violento que dela sai — que começa o filme. De seguida, vemos mulheres, centenas de mulheres, que atrás das máquinas cosem tecido vermelho que será uma T-shirt. Todos os dias, na fábrica onde Shimu trabalha, são produzidas 1650 T-shirts. Depois da China, o Bangladesh é o segundo maior fabricante têxtil do mundo, mas o crescimento do país fez-se alavancado numa indústria com fortes debilidades. Os trabalhadores têxteis bengalis estão entre os mais mal pagos do mundo (muitos não ganham o suficiente para pagar alimentação e renda de casa) e a derrocada do edifício Rana Plaza em 2013, que matou mais de mil trabalhadores e feriu outros 2500, revelou mundialmente as más condições laborais vividas nas fábricas onde se produzem milhões de peças de vestuário para as grandes marcas de fast fashion do Ocidente, cujo modelo de negócio assenta na produção em massa e a baixo custo. “Com o Rana Plaza toda a gente teve de reparar no que estava a acontecer. Até os trabalhadores perceberam que tinham de lutar pelos seus direitos”, explica ao PÚBLICO a realizadora Rubaiyat Hossain.
É essa luta que vemos em Made in Bangladesh, personificada em Shimu, a jovem que, depois de um incêndio na fábrica onde trabalha ter causado a morte a uma colega, decide enfrentar os patrões e lutar pelos direitos das trabalhadoras. “Tratam-nos como lixo”, diz uma delas no longo percurso que fazem a pé de casa até à fábrica. Mais de 80% dos trabalhadores têxteis bengalis são mulheres. Os donos das fábricas preferem a mão-de-obra feminina pela destreza no trabalho mas também por considerarem que são mais fáceis de dominar.
Crítica ao patriarcado
Ao longo de todo o filme as ameaças verbais e físicas são constantes. Shimu é o símbolo da luta pela libertação dessa opressão no local de trabalho, mas também das mulheres na sociedade bengali. Na fábrica, enfrenta os patrões exigindo-lhes o pagamento de horas extra — ou que pelo menos deixem a ventoinha ligada durante a noite quando o prazo de entrega de uma encomenda as obriga a dormir na própria fábrica. Em casa, Shimu tenta gerir a desconfiança do marido, desempregado, que não aceita que a mulher desafie o poder instituído. “A maneira como as trabalhadoras são tratadas já tem sido muito falado e debatido nos media, mas a crítica do patriarcado não é algo que vejamos com frequência no Bangladesh”, explicou Rubaiyat Hossain.
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A realizadora, de 38 anos, tem vindo a afirmar a sua voz activista e feminista através dos seus filmes, nos quais procura retratar “mulheres que me rodeiam”. Formou-se em Estudos Femininos e de Género no Smith College, em Massachusetts, nos EUA, e trabalhou em várias ONGs e associações pela defesa dos direitos das mulheres. O filme de estreia, Meherjaan (2011), enfrentou forte contestação política e social por ter sido recebido como antipatriótico e uma crítica ao nacionalismo masculino. Apesar de ter sido estreado no Bangladesh, foi retirado das salas pouco tempo depois.
No segundo filme, Under Construction (2013), Rubayat debruçou-se sobre as dificuldades de uma jovem actriz da classe média. Um filme que esteve em exibição em 20 salas em França e em apenas três no Bangladesh. Perante a dificuldade em encontrar financiamento para os seus filmes, em Made in Bangladesh Rubayat optou por uma co-produção europeia, depois de ter participado com o guião na plataforma Open Doors no Festival de Locarno, em 2017. Numa entrevista, confessou que ser mulher realizadora no Bangladesh é muito solitário: é a única mulher na sala na maior parte das vezes. E não raras vezes ouve a pergunta: “O que é que tu sabes sobre fazer filmes?”
Aprender uma nova língua
O cinema será para Rubayat o que o código do trabalho representa, no filme, para Shimu: uma ferramenta de expressão e de emancipação. Quando Shimu fala às restantes trabalhadoras sobre o código de trabalho — que lhe é dado por uma activista numa associação pelos direitos das mulheres — é como se aprendessem uma nova língua. Na associação, pedem a Shimu para tirar fotografias da fábrica, distribuir folhetos, e começar a reunir assinaturas para criar um sindicato. Depois da catástrofe do Rana Plaza, muito mudou, diz Rubayat. As condições de segurança melhoraram com a assinatura de um acordo internacional entre produtores e retalhistas para o cumprimento de normas de segurança nas fábricas. O número de acidentes (sobretudo incêndios) caiu drasticamente. O salário mínimo também subiu, de 5300 takas (56 euros) para 8000 (85 euros). Em Janeiro deste ano, mais de 50 mil trabalhadores saíram à rua em protesto exigindo um aumento três vezes maior, em manifestações que fizeram mais de 50 feridos e deixaram um morto. Para os sindicatos, interessa ao governo do Bangladesh manter os salários baixos como vantagem competitiva em relação a outros países produtores de têxtil. Mas ao país, que em 2018 elevou o seu estatuto de país de terceiro mundo para país em vias de desenvolvimento, também interessará limpar o negro cadastro das fábricas têxteis.
Para Rubayat, o objectivo do filme é alertar consciências. Não defende que no Ocidente se deixe de comprar roupa “made in Bangladesh”: “Não há uma solução fácil, a estrutura de trabalho barato foi criada ao longo de décadas. Temos de ser mais conscientes como consumidores e pressionar as marcas que não sofrem nenhuma consequência”, defende. A realizadora prefere encorajar o apoio aos sindicatos ou às associações que no Bangladesh lutam activamente pela defesa dos direitos das mulheres. A estrutura social e cultural que coloca a mulher num plano inferior demorará muito mais tempo a mudar, acredita, e não será à força da lei. No filme, uma das cenas mostra o momento em que Shimu vai até ao Ministério do Trabalho com outras mulheres para exigir que as recebam e deixem registar o sindicato. Gritam com o funcionário da recepção, não aceitam ser ignoradas, parecem prestes a iniciar um motim. O funcionário replica: “Mas que espécie de mulheres são vocês?”
Mas é também no próprio universo feminino bengali que são precisas revoluções. A certa altura, a senhoria de Shimu, apercebendo-se da sua luta para criar o sindicato, tenta dissuadi-la. Desta vez a interpelação tem voz feminina: “Agora achas que tens asas?”. “Muitas vezes são as mulheres as maiores defensoras do patriarcado e não nos apercebemos disso”, explica. “As mais velhas forçam esses valores morais nas mais novas. Para quem foi educado assim, ver uma mulher a querer ser diferente assusta.” Apesar de ser uma personagem ficcionada, Shimu é inspirada em Daliya, uma operária que Rubaiyat Hossain conheceu em 2016, na fase de pesquisa para o filme. Daliya era desde há três anos presidente de um sindicato que formou com apenas 23 anos. A sua força e história de vida impressionaram Rubaiyat, que acabou a pedir-lhe ajuda para escrever os diálogos e para ensinar as actrizes a trabalharem com a máquina de costura. “Queria focar-me na jornada de como uma simples mulher encontra a sua voz, se torna uma líder e começa a empoderar outras mulheres.”