“Amarrar” recém-especialistas ao Serviço Nacional de Saúde – política pírrica
O sucesso de uma política não se pode medir pelo nível de conflitualidade que cria, mas se é ou não efetiva a resolver o problema que existe.
Ainda é pouco claro que novas políticas o governo e o legislador pretendem propor para fixação de médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Na comunicação social foi avançada a ideia de um contracto de permanência após a conclusão da especialidade que evite que os jovens especialistas emigrem ou trabalhem no sector privado. A medida gerou de imediato reações da ordem, sindicatos e estudantes de medicina, o que faz antever grande conflitualidade.
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Ainda é pouco claro que novas políticas o governo e o legislador pretendem propor para fixação de médicos no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Na comunicação social foi avançada a ideia de um contracto de permanência após a conclusão da especialidade que evite que os jovens especialistas emigrem ou trabalhem no sector privado. A medida gerou de imediato reações da ordem, sindicatos e estudantes de medicina, o que faz antever grande conflitualidade.
Para perceber melhor o problema, vamos analisar o último relatório social do Ministério da Saúde (2017). Nesse relatório vemos que quase 9 em cada 10 (84%) dos médicos que acabam a especialidade continuam a trabalhar no SNS. No entanto, há uma grande variação consoante a especialidade, especialidades que tradicionalmente tem um sector privado mais dinâmico (oftalmologia, dermatologia, reumatologia, radiologia e outras) tem uma retenção mais baixa, fruto de condições de trabalho mais atrativas no setor privado. Pouco sabemos sobre médicos mais seniores que abandonam o SNS.
Da análise acima torna-se evidente que o foco da política deve ser a manutenção os que atualmente não continuam o seu vínculo com o SNS (os 16%), pois é aí que reside o problema. Imaginemos que é implementada a política de permanência depois da conclusão da especialização. Este contrato de permanência terá de ter sempre uma cláusula para “comprar a saída”, para ser minimamente justo. Para além disso, se for uma política negociada com os sindicatos é provável e expectável que existam contrapartidas (melhoria do contrato) devido à restrição imposta, e que se aplicariam a um grande número de profissionais. No entanto, assumindo que se pode “comprar a saída” pode dar-se o caso de os médicos ou o seu futuro empregador pagarem o montante devido para cessarem o contrato, e efetivamente comprarem a saída. Pode dar-se o caso de a restrição ao movimento dos recém-especialistas intensificar o recrutamento de especialistas mais seniores pelo setor privado. O que torna esta opção política com um impacto muito incerto, geradora de grande conflitualidade, que pode não fixar os profissionais em que há mais carência. No fundo é uma opção política pouco interessante para cumprir o objetivo a que se propõe.
Vale a pena recordar o histórico de política para a fixação de médicos no SNS. Em 2004, foi estabelecido um regime em que o médico interno, na escolha da especialidade, podia optar por uma “vaga preferencial” definida para uma área carenciada e se comprometia a, quando terminasse a especialidade, ficar nesse local por um período igual ao da formação; como compensação, tinha direito a uma incentivo monetário (9000 euros/ano), que tinha de devolver em caso de incumprimento. Esta medida foi abandonada em 2015 sem nunca se ter avaliado o seu impacto, entender se os incentivos funcionaram e, se não funcionaram, o que podia ser melhorado.
Em 2015, foi aprovado um novo pacote de medidas para fixar médicos já especialistas fora dos grandes centros urbanos, e onde existam menos profissionais. Entre os benefícios há um acréscimo salarial (40% do salário base de recém-especialista) durante 3 anos, aumento do período de férias e maior disponibilidade para formação. No último ano foram abertas pouco mais de 150 vagas neste formato. Mais uma vez, há pouca informação para avaliar se este pacote de incentivos à fixação está a funcionar.
A julgar pelos problemas na fixação de médicos que são tornados públicos, a natureza do problema parece estar a afetar mais os centros urbanos, onde a atividade fora do SNS é mais intensa. Isso deveria levar à adoção de uma política de incentivos mais flexível (durante e após a especialização) focada nas especialidades onde há mais carência, e que não exclua centros urbanos. Esta pode ser uma alternativa política mais dirigida ao problema, mais eficaz, e que também cria menos conflitos com os médicos. Para além disso, vale a pena avaliar as várias políticas de fixação nas últimas décadas, pois só assim conseguiremos saber definitivamente o que resulta.
O sucesso de uma política não se pode medir pelo nível de conflitualidade que cria, mas se é ou não efetiva a resolver o problema que existe. “Amarrar” os médicos ao SNS, após a especialidade, terá um impacto muito incerto, e criando imenso conflito com os jovens médicos, já exaustos e que dão imenso ao SNS. Isso é especialmente relevante porque há políticas de fixação alternativas que podem e devem ser exploradas que são potencialmente mais eficazes.
O Rei de Epirus na antiga Grécia deu origem a celebre frase “vitória pírrica” para descrever uma aparente vitória em que os custos são tão grandes que se torna na prática numa derrota. De uma forma semelhante há políticas com custos elevados e com ganhos incertos e pequenos que se podem tornar pírricas. “Amarrar” os recém-especialistas ao SNS pode tornar-se numa política pírrica.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico