Enlevo e comoção por uma superstar do canto
O contratenor Andreas Scholl foi igual a si mesmo, ou seja, espectacular. Mas o concerto só na segunda parte conseguiu a comunicação perfeita com o público, graças a dois compositores italianos e a um magnífico Divino Sospiro.
Andreas Scholl é um dos grandes contratenores do nosso tempo. No passado domingo, juntou-se ao Divino Sospiro para um concerto único em Lisboa. Tratava-se de um programa extremamente bem pensado, dedicado a composições relacionadas com o culto de Maria, e integralmente preenchido por obras de compositores italianos de inícios do século XVIII. Contudo, a grande atracção da tarde era mesmo Andreas Scholl. Sentia-se à porta um certo clima de culto, mas não era de Maria…
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Andreas Scholl é um dos grandes contratenores do nosso tempo. No passado domingo, juntou-se ao Divino Sospiro para um concerto único em Lisboa. Tratava-se de um programa extremamente bem pensado, dedicado a composições relacionadas com o culto de Maria, e integralmente preenchido por obras de compositores italianos de inícios do século XVIII. Contudo, a grande atracção da tarde era mesmo Andreas Scholl. Sentia-se à porta um certo clima de culto, mas não era de Maria…
Já no século XVIII a devoção religiosa (os seus modelos de identificação e os seus modos de comunicar) começou a “migrar” em grande medida para o domínio da arte, e a música foi um dos seus lugares predilectos. Algumas das regras “sagradas” da sala de concerto, aliás, vêm certamente desse processo que se cristalizou nos séculos seguintes e permanece na escuta da música erudita: pedem-se atenção, silêncio, pouca movimentação, uma atitude respeitosa e uma entrega do espectador – devemos deixar-nos levar, e enlevar. O máximo ruído que se espera ouvir na sala será, talvez, um suspiro…
O Divino Sospiro tem-se destacado, nos seus já 15 anos de existência, como uma das mais interessantes orquestras de câmara barrocas e certamente um dos projectos mais estimulantes no campo da música antiga em Portugal, com um reconhecimento que passa fronteiras. E percebe-se porquê: neste concerto tão coerente e bem arquitectado, ouviu-se uma orquestra com uma qualidade de interpretação excepcional, com uma direcção rigorosa mas sem perder a inventividade e a capacidade de descoberta de novos traços nas composições de Nicola Porpora, Angelo Ragazzi, Pasquale Anfossi, Leonardo Vinci e o mais famoso de todos eles, Antonio Vivaldi.
Andreas Scholl foi primoroso logo na primeira Ária de Maria, Occhi Mesti, de Porpora. Mas, para um cantor assim, o “muito bom” não chega – não basta admirar a sua capacidade de mudar de registos vocais sem que nada se note, sem quebra alguma, fazendo a máxima artificialidade parecer toda natureza. Não basta admirar o seu delicioso timbre ou extasiarmo-nos com a sua afinação quase tão imaculada como Maria. Até um escorregar de folhas no início ele soube transformar num belo tremolo inovador!
Mas de facto só na segunda parte do concerto ele deu os voos mais do que esperados para outra dimensão. E aí o enlevo da música barroca, tocada com uma certeiríssima intenção pelo Divino Sospiro, levou a sala silenciosa e imóvel para uma verdadeira comoção, resultado de uma escuta devota e, queremos crer, atenta.
A orquestra Divino Sospiro esmerou-se em cada detalhe, em cada respiração, num trabalho muito cuidado de articulação e dinâmica. Com um baixo contínuo alargado, com cravo, órgão, fagote, contrabaixo e dois violoncelos, e um conjunto de violinos e violetas magnífico, encantou na Sinfonia de Vinci (da Oratória Maria Dolorata) e com o violoncelo barroco da espantosa Rebeca Ferri a acompanhar Scholl no belíssimo Chi mi priega, chi m’ama (“Quem me implora, quem me ama”) do mesmo Leonardo Vinci.
Faltavam dois momentos altos da noite: o Concerto em dois coros para a Santíssima Assunção de Maria Virgem, de Vivaldi, com o virtuosismo do violinista Stefano Barneschi. E depois, o Stabat Mater de Vivaldi, com Scholl em grande estilo cantando o que tão bem conhece e o Divino Sospiro… divinal. Aí sim, a devoção à superstar tornou-se comoção vivaldiana e mariana. Um momento assim já não pode ser trocado por um CD que se tira da estante, porque a presença colectiva na sala de concerto, apesar de parecer coisa bem antiga, ainda provoca, acredite-se ou não, encanto, emoção e enlevo. E, culpas para Vivaldi, uma pontinha de irresistível melancolia.
Que pena faltar naquela sala uma presença maior de estudantes de música. Será falta de curiosidade? Talvez. Serão os bilhetes muito caros? É possível. Há “bilhetes de última hora” mais baratos, mas ainda assim… Por que não disponibilizar bilhetes francamente baratos ou mesmo gratuitos a jovens das escolas de música? Afinal, apesar de estar cheia a plateia, lá para cima a sala estava vazia.