A alma dos poetas no Porto/Post/Doc
Audrius Stonys, Paulo Rocha, Andrei Tarkovsky – eis a embaixada da poesia como arte suprema e da imagem como essência da poesia no festival de cinema que decorre até domingo.
Winston Churchill terá dito, durante a Segunda Guerra Mundial, que se recusava a cortar o financiamento às artes para alimentar o esforço de guerra: se o fizesse, questionava, “por que estamos então a lutar?” A atribuição da afirmação foi entretanto dada como errada – Churchill nunca pronunciou tais palavras, pelo menos que tenha ficado registado – mas se a ordem dos factores não altera o resultado, também as dúvidas sobre a autoria deste raciocínio não lhe retiram validade. A arte e a cultura costumam ser das primeiras vitimas de qualquer conflito, mesmo quando é em nome de uma cultura e da sua defesa que se entra em guerra.
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Winston Churchill terá dito, durante a Segunda Guerra Mundial, que se recusava a cortar o financiamento às artes para alimentar o esforço de guerra: se o fizesse, questionava, “por que estamos então a lutar?” A atribuição da afirmação foi entretanto dada como errada – Churchill nunca pronunciou tais palavras, pelo menos que tenha ficado registado – mas se a ordem dos factores não altera o resultado, também as dúvidas sobre a autoria deste raciocínio não lhe retiram validade. A arte e a cultura costumam ser das primeiras vitimas de qualquer conflito, mesmo quando é em nome de uma cultura e da sua defesa que se entra em guerra.
Tudo isto para dizer que nos lembrámos muito desta afirmação ao ver A Cinema Prayer, o documentário que o Porto/Post/Doc exibiu sobre a obra e a vida de Andrey Tarkovsky (1932-1986), dirigido pelo seu filho, Andrey V. Tarkovsky. Tarkovsky pai, que todos reconhecemos como um magnífico criador de imagens e um dos maiores cineastas do século XX, dá a voz à importância da arte e da poesia na vida quotidiana – dá voz literalmente, porque o documentário se mune de entrevistas, registos, gravações em que o cineasta fala da sua vida e dos seus filmes.
Tarkovsky cita um episódio curioso: depois de uma projecção de O Espelho (1974), a senhora da limpeza chegou para expulsar o público ainda presente na sala e ao fazê-lo explicou o filme melhor do que qualquer espectador ou crítico tinha conseguido fazê-lo. Ela tinha percebido a poesia que Tarkovsky tinha querido expressar: “uma imagem poética não pode ser descodificada”, dizia o cineasta, apenas sentida. O seu era um cinema da poesia tornada imagem e da poesia como arte suprema, sempre receando um futuro onde, “com o desaparecimento do último poeta, a vida tornar-se-á sem alma”. Não surpreende que Tarkovsky tenha filmado tão pouco e tenha tido tantos desaguisados com as autoridades soviéticas – a poesia dá-se mal com o autoritarismo.
Mas é por essa poesia que chegamos a uma outra revelação, de resto notável, desta edição do Porto/Post/Doc, o cineasta lituano Audrius Stonys (Vilnius, 1966), documentarista de quem poderemos ainda ver (Rivoli, sexta-feira, 16h30) Uku Ukai (2006) e Woman in Glacier (2016), depois de termos visto outras curtas suas e a escolha que fez de “documentários poéticos” da Lituânia. A afirmação de Tarkovsky segundo a qual a “imagem poética não pode ser descodificada” aplica-se na perfeição ao trabalho de Stonys e de antepassados seus como Robertas Verba ou Edmundas Zubavicius, que na década de 1960, a partir de “encomendas” mais ou menos estatais sobre temas regionais, subverteram os desejos centralistas e usaram o documentário como prancha de salto para uma piscina de experimentações formais e narrativas.
Quando Stonys começa a filmar, em 1989, o seu trabalho parte já em direcções mais abstractas, diríamos tarkovskianas. Woman in Glacier é um bom exemplo disso: este retrato de uma cientista lituana que manteve, sozinha, durante 30 anos, uma estação glaciológica no Cazaquistão é uma espécie de síntese ou súmula do cinema de Stonys, entre a imensidão das paisagens eternas e a paz quase zen de uma mulher que aprendeu a habitar este território de solidão. Woman in Glacier é um poeta a filmar o seu leitor.
E, já que estamos a falar de poetas e leitores, eis a deixa para anunciarmos Paulo Rocha (1935-2012) e o seu díptico sobre Wenceslau de Moraes (1854-1929) em grande ecrã. Porque Rocha foi, também a seu modo, um dos poetas do cinema português – e é curioso ver como Tarkovsky, a geração lituana pré-Stonys e Rocha, trabalhando ou começando a trabalhar sob regimes que cerceavam a liberdade num mesmo espaço temporal (a década de 1960), souberam encontrar uma curiosa resistência poética às restrições que os rodeavam.
Depois de ter mostrado em 2018 a obra de António Reis e Margarida Cordeiro, este ano é a vez de A Ilha dos Amores (1982), o olhar biográfico que Rocha dedicou a Moraes (Rivoli, sábado, às 18h), e do seu filme-companheiro documental, A Ilha de Moraes (1984; Rivoli, sexta-feira, às 18h) – duas obras raramente vistas e que vão ser mostradas nas cópias digitais preparadas pela Cinemateca Portuguesa. Mais importante, A Ilha dos Amores passa na versão restaurada estreada em 2018 em Cannes – em sala, onde é o seu devido lugar, para ser descoberta por toda uma nova geração de cinéfilos. Ainda há poetas, ainda há alma.