Marrocos, anos 1970: um país perdido que o cinema reencontrou
É um dos acontecimentos do Porto/Post/Doc: De quelques évènements sans signification, um filme perdido rodado há mais de 40 anos que parece um “cinema do real” feito hoje.
“Achas que estás a mudar o que quer que seja com a tua câmara? Não fazes sequer ideia de onde fica Hay Farah! Podes limitar-te a filmar as coisas que nunca vais ter coragem de fazer!”
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“Achas que estás a mudar o que quer que seja com a tua câmara? Não fazes sequer ideia de onde fica Hay Farah! Podes limitar-te a filmar as coisas que nunca vais ter coragem de fazer!”
Serve para quê, um documentário, um filme, o cinema? É um mero entretenimento, uma grande ilusão, ou algo que pode mudar o mundo? Se calhar é por isso que o marroquino Mostafa Derkaoui (Oujda, 1944) chamou ao seu filme De quelques évènements sans signification (Sobre Alguns Acontecimentos Pouco Significativos), porque a questão toda que se joga aqui é, precisamente, o significado, a essência, a verdade.
É importante introduzir aqui a peculiaridade de De quelques évènements sans signification: uma “excrescência” na competição internacional do Porto/Post/Doc (Rivoli, quarta-feira, às, 21h, e sexta-feira, às 16h) e ao mesmo tempo uma das mais cristalinas chaves para a compreensão dos modernos cinemas do real. O filme de Derkaoui – a sua primeira longa – foi rodado em 1974, financiado por um grupo de pintores, músicos, poetas, actores e jornalistas marroquinos, e, depois de uma única exibição, interditado pela censura marroquina. Durante quase meio século, manteve-se “na clandestinidade”, tendo circulado apenas muitos anos mais tarde em VHS ou DVD piratas de má qualidade.
O negativo original de 16mm, contudo, fora revelado em Espanha e, sob a supervisão de Derkaoui e do seu irmão (o director de fotografia Mohamed Abdelkrim Derkaoui), a produtora franco-marroquina L’Observatoire e a Filmoteca da Catalunha restauraram-no a partir do original. O filme começou a circular em festivais este ano (teve estreia mundial no Forum Expanded da Berlinale, passou igualmente pelo FID Marseille). É um filme “novo” – visto que, na prática, nunca foi visto nem teve estreia comercial – ou é um filme “antigo”?
A verdade é que essa questão de datação, embora incontornável, é de somenos perante o que nos é dado a ver neste instantâneo de Casablanca na década de 1970. Uma equipa de imagem percorre a cidade fazendo perguntas aos transeuntes sobre o cinema marroquino. Apresentam-se como um grupo de cineastas que procuram criar um novo cinema que venha do público e a ele seja dirigido. Mas, ao fim de alguns minutos, o realizador manda parar tudo num café cheio de gente, chama o assistente, pede para recomeçar a cena. Instala-se a dúvida: estamos a ver uma ficção que se quer fazer passar por documentário, um documentário que integra a sua própria rodagem e que se faz passar por ficção? E por que é que este filme feito há 45 anos nos parece tão moderno, tão à frente do seu tempo?
De quelques évènements sans signification mantém, metódica e inteligentemente, a dúvida até ao fim. Nunca conseguimos distinguir onde termina a verdade e começa a encenação, enquanto a equipa descobre que, durante as rodagens, terá filmado um operário procurado pela polícia por ter assassinado o patrão que o explorava, e alguns dos seus elementos começam a perguntar-se se o filme não deveria deixar de ser sobre o cinema marroquino para se transformar num inquérito sobre a cidadania num país isolado e opressivo. Os anos 1970 eram já de si um período histórico altamente politizado e teorizado, e o próprio Derkaoui assume-o ao tornar o seu filme sobre o próprio confronto entre teoria e prática. “O artista é o homem que antecipa a ocasião, está sempre à frente da curva” é uma afirmação que tem dificuldades de coexistência com “não precisamos de um cinema que não fale de nós.”
De quelques évènements sans signification é uma tentativa não de resolver mas de definir a impossível quadratura do círculo: a verdade do cinema é indissociável do seu contexto social, político, económico, de quem o faz e das suas razões para o fazer. “Um cinema que não aborde problemas reais não ajuda a resolver as coisas” – mas se ninguém ouvir uma árvore cair numa floresta, será que caiu realmente?
Os problemas que enfrentou em 1974 Mostafa Derkaoui – que estudou cinema na Polónia e veio a ter carreira mais ou menos regular – não desapareceram no quase meio século entretanto decorrido. As perguntas que De quelques évènements sans signification faz continuam aí, sem respostas definitivas. Este filme redescoberto não pertence só ao passado. Nada mudou. E, contudo...