Documentos revelam como a China faz a “transformação ideológica” dos uigures em Xinjiang
Nos centros de detenção, os presos são vigiados constantemente, não sabem quando podem voltar a sair e nunca recebem familiares pessoalmente. A China diz que são escolas para promover a integração no mercado de trabalho.
São vigiados a todos os momentos do seu dia, têm posições pré-definidas para se sentarem à mesa durante as refeições, são obrigados a falar uma língua que pouco dominam, só podem contactar com familiares uma vez por semana e nunca presencialmente – e a fuga é praticamente impossível. É assim o dia-a-dia dos milhares de uigures detidos pelo Estado chinês em Xinjiang, onde uma investigação de um consórcio internacional de jornalistas revelou pormenores “do maior encarceramento maciço de uma minoria étnico-religiosa desde a II Guerra Mundial”.
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São vigiados a todos os momentos do seu dia, têm posições pré-definidas para se sentarem à mesa durante as refeições, são obrigados a falar uma língua que pouco dominam, só podem contactar com familiares uma vez por semana e nunca presencialmente – e a fuga é praticamente impossível. É assim o dia-a-dia dos milhares de uigures detidos pelo Estado chinês em Xinjiang, onde uma investigação de um consórcio internacional de jornalistas revelou pormenores “do maior encarceramento maciço de uma minoria étnico-religiosa desde a II Guerra Mundial”.
Há muito tempo que a detenção maciça de uigures, uma minoria muçulmana da Ásia Central, é um segredo mal escondido na China. Relatos de antigos presos e imagens captadas por satélite já tinham revelado o esforço metódico e gigantesco que as autoridades chinesas empreenderam para silenciar os cerca de dez milhões de uigures em Xinjiang, no Noroeste do país.
Uma investigação publicada no domingo por vários órgãos de comunicação que integram o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação, incluindo o Guardian, a BBC e o El País, mostra, pela primeira vez, documentos internos chineses que fornecem detalhes sobre o funcionamento dos centros de detenção.
Um dos principais documentos é um telegrama de 2017 que explica, por exemplo, que há um período mínimo de um ano para as detenções, mas não um limite máximo, e que mesmo depois de concluída essa fase, os detidos têm de passar entre três a seis meses para desenvolver “treino de capacidades de trabalho”. É imposto um sistema de vigilância sobre todos os detidos com o objectivo de “descobrir e remover violações comportamentais e situações anormais”, e também de “avaliar e resolver os problemas ideológicos e as emoções anormais” dos detidos.
A conduta dos presos é limitada ao máximo e a cada um é prescrita “uma posição fixa da cama, uma posição fixa na fila, uma carteira fixa na sala de aula, e um local fixo durante as sessões de treino profissional”. No telegrama, é também delineado um sistema de pontuação para avaliar a “transformação ideológica” dos detidos.
Outros documentos revelados mostram a escala das detenções. Em apenas uma semana, em Junho de 2017, foram classificadas como suspeitas de “extremismo” mais de 24 mil pessoas, das quais 15 mil foram enviadas para centros de reeducação e 700 foram presas de imediato.
Não se sabe ao certo quantas pessoas foram detidas nestas condições, mas imagens de satélite comprovaram a construção de quase três dezenas de campos deste género em Xinjiang e as estimativas totais variam entre 800 mil e dois milhões de presos. Desde 2018 que o Governo chinês reconhece a existência daquilo a que chama “centros de treino vocacional” de cariz voluntário, mas nega tratarem-se de prisões. Diz serem escolas com o objectivo de integrar a população no mercado de trabalho.
As causas para alguém ser detido nestes centros são pouco claras. Em Pequim olha-se para Xinjiang e para os uigures com muita desconfiança, especialmente desde que uma onda de protestos em Urumqi, capital da região, em 2009, contra a migração maciça de chineses da etnia han, a maioritária na China, causou mais de 200 mortos. Nos anos seguintes, houve vários ataques de pequena escala protagonizados por uigures, que agravaram o sentimento de insegurança.
Para travar o extremismo, as autoridades chinesas montaram nos últimos anos um autêntico Estado policial em Xinjiang, onde vigora, por exemplo, um sistema de câmaras de vídeo-vigilância com pouco paralelo no mundo e a utilização de aplicações móveis nos telemóveis pessoais é escrutinada. A partilha de versículos do Corão, a entrada em mesquitas ou até o comprimento da barba passaram a ser indicadores de radicalização, na óptica de Pequim.
A única resposta à revelação dos documentos veio através da embaixada chinesa em Londres que considerou a investigação como “notícias falsas” e garantiu que “a liberdade religiosa é inteiramente respeitada em Xinjiang”.