Documentos secretos detalham programa de lavagem cerebral de minorias na China

Consórcio de jornalistas de investigação divulga documentos que mostram a extensão de programa de reeducação forçada dirigido a minorias muçulmanas do Noroeste do país.

Foto
O exterior do campo de “educação ideológica e formação profissional” de Xinjiang REUTERS/Thomas Peter

Uma série de documentos secretos do Governo chinês obtidos pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação e revelados este domingo por 17 órgãos de comunicação social internacionais, incluindo a BBC, The Guardian, The New York Times, Associated Press, El País e Le Monde, revelam e detalham pela primeira vez como Pequim leva a cabo um extenso programa de lavagem cerebral de centenas de milhares de membros de minorias étnicas muçulmanas numa rede de campos de detenção de alta segurança.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

Uma série de documentos secretos do Governo chinês obtidos pelo Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação e revelados este domingo por 17 órgãos de comunicação social internacionais, incluindo a BBC, The Guardian, The New York Times, Associated Press, El País e Le Monde, revelam e detalham pela primeira vez como Pequim leva a cabo um extenso programa de lavagem cerebral de centenas de milhares de membros de minorias étnicas muçulmanas numa rede de campos de detenção de alta segurança.

As suspeitas não são novas e a China sempre negou as acusações, alegando disponibilizar apenas um programa voluntário de “educação ideológica e formação profissional” numa série de campos construídos a partir de 2017 no Noroeste do país. No entanto, os documentos agora revelados demonstram como os detidos são encarcerados, punidos e sujeitos um programa de lavagem cerebral para alterar os seus comportamentos e crenças.

Os reclusos desconhecem quando serão libertados, estando a sua saída dos campos de detenção dependente de uma avaliação de um comité do Partido Comunista sobre o seu processo de “transformação”.

Numa primeira reacção oficial de Pequim, o embaixador chinês no Reino Unido, Liu Xiaoming, nega quaisquer abusos e defende o sucesso do programa de reeducação, afirmando que não houve qualquer atentado na região nos últimos três anos, e acusando “alguns indivíduos no Ocidente” de “difamar a China” para “criar uma desculpa para interferir” nos seus “assuntos internos” e dificultar os seus “esforços antiterroristas”.

Campos dirigidos como prisões de alta segurança

Um dos documentos-chave revelados é um memorando confidencial de nove páginas, datado de 2017 e assinado por Zhu Hailun, um alto dirigente do Partido Comunista de Xinjiang, região do Noroeste chinês povoada por minorias muçulmanas como os uigures e os cazaques, e dirigido aos responsáveis pelos campos de detenção. O documento decreta que estes devem ser dirigidos tal como prisões de alta segurança, evitando qualquer fuga, aumentando a “disciplina e punição de violações comportamentais”, promovendo “o arrependimento e a confissão”, fazendo do estudo da língua mandarim “a principal prioridade”, encorajando os reclusos a “transformarem-se verdadeiramente” e garantindo que exista “videovigilância completa dos dormitórios e das salas de aula, sem ângulos cegos”, cita a britânica BBC.

Outros documentos revelam o elevado ritmo de detenções: 15 mil habitantes da zona sul de Xinjiang foram levadas para estes campos só numa semana de 2017. No total, organizações de defesa dos direitos humanos apontam que perto de um milhão de pessoas, a maioria membros da etnia uigur, terá sido detida nos últimos três anos no âmbito deste programa de reeducação.

O processo de identificação e detenção assenta em critérios largos. Outro documento obtido pelo consórcio indica que quase dois milhões de pessoas foram sinalizadas pelo simples facto de utilizarem uma determinada aplicação móvel de partilha de dados considerada suspeita. As autoridades ordenaram depois uma investigação de 40.557 membros desse grupo, “um a um”, e que qualquer indivíduo em relação ao qual não fosse “possível afastar suspeita” fosse detido e encaminhado para os campos prisionais.

Enquanto os documentos revelam a dimensão do programa e detalham os seus procedimentos — numa investigação conhecida como “China Cables” —, o consórcio de jornalistas e órgãos de comunicação associados dão voz a antigos reclusos que relatam os abusos cometidos dentro dos campos.

À Associated Press, Sayragul Sauytbay, uma mulher de etnia cazaque, descreve o campo em que esteve detida como “um campo de concentração, muito mais assustador que uma prisão”, em que reclusos eram torturados e violados em “salas escuras” de onde se ouviam gritos. Erzhan Querban, outro cazaque, afirma ter partilhado uma cela com dez outras pessoas com quem não podia falar, e que os inspectores do campo em que esteve detido não permitiam que rezassem nem que usassem barba ou bigode. Quem desobedecesse era encarcerado em regime solitário.

Outro antigo recluso citado pela Associated Press, mas que não é identificado pelo nome, recorda inspecções em que eram feitas perguntas em mandarim. Quem não conseguisse responder ou quem o fizesse noutro idioma era espancado e privado de alimento durante vários dias.

O dia-a-dia nos campos é altamente controlado, com horas específicas para dormir, tomar banho e usar os lavabos. O contacto com o exterior está reduzido a uma chamada telefónica semanal e a uma videochamada mensal, e pode ser suspenso como punição.

“É muito difícil ver isto como qualquer outra coisa que não um esquema de lavagem cerebral em massa, concebido e dirigido contra uma comunidade étnica inteira. É uma transformação total que é especificamente concebida para varrer da face da Terra os uigures muçulmanos de Xinjiang enquanto um grupo cultural autónomo”, comentou à BBC o advogado especialista em direitos humanos Ben Emmerson, que também é conselheiro do Congresso Mundial Uigur.