Catarina Sequeira deixou a moda para trás e abraçou o wôdu são-tomense
Chegou a São Tomé e Príncipe desgastada, depois de 20 anos como designer de moda. Foi aqui que descobriu o wôdu e que podia viver de forma mais leve. A partir de 2020 vai acompanhar grupos em viagem pela “essência” de São Tomé.
Quando Catarina Sequeira foi convidada para dar uma formação em costura durante dois meses na Roça de São João de Angolares, hesitou. Como ensinar em dois meses o que aprendera em três anos? Aceitou, no entanto. Todos os dias saía “da cidade” (São Tomé) e percorria a estrada para sul, ao encontro das sete mulheres. “Andava com a alma esgotada”, lembra. “Passei mais de um mês a explicar a uma aluna o que era um centímetro”, conta, “passava o tempo a desmanchar costuras que ficavam às ondinhas”. Elas diziam-lhe: “Catarina tem muita paciência”. “A verdade é que eu fartava-me de rir com elas, ficámos amigas”, afirma. “Houve uma vez que fiquei doente, tomei chá com água da torneira, e elas foram incansáveis. Foram comigo ao centro de saúde e tudo.” Catarina não esquece também as goiabas que iam colher às árvores para ela – sobretudo, não esquece o choro de alegria quando viram os vestidos que fizeram prontos.
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Quando Catarina Sequeira foi convidada para dar uma formação em costura durante dois meses na Roça de São João de Angolares, hesitou. Como ensinar em dois meses o que aprendera em três anos? Aceitou, no entanto. Todos os dias saía “da cidade” (São Tomé) e percorria a estrada para sul, ao encontro das sete mulheres. “Andava com a alma esgotada”, lembra. “Passei mais de um mês a explicar a uma aluna o que era um centímetro”, conta, “passava o tempo a desmanchar costuras que ficavam às ondinhas”. Elas diziam-lhe: “Catarina tem muita paciência”. “A verdade é que eu fartava-me de rir com elas, ficámos amigas”, afirma. “Houve uma vez que fiquei doente, tomei chá com água da torneira, e elas foram incansáveis. Foram comigo ao centro de saúde e tudo.” Catarina não esquece também as goiabas que iam colher às árvores para ela – sobretudo, não esquece o choro de alegria quando viram os vestidos que fizeram prontos.
E na sua memória ficou também cravado o dia em que chegou a São Tomé e Príncipe, uma quinta-feira de Maio de 2017. Chovia, recorda. Foi à guest house onde ficou instalada e seguiu para a CACAU – Casa das Artes, Criação, Ambiente e Utopias, a associação cultural que tem como ambição ser palco e oficina para os criadores nacionais. Havia uma exposição do fotógrafo são-tomense Dário Pequeno Paraíso. Foi um dia feliz, com lágrimas. Foi um dia que, agora, pode ser visto com prenúncio de mudança. Que se corporizará a partir de 2020, quando Catarina começar a levar grupos para descobrir o “seu” São Tomé e Príncipe. Na sua Viaja com Wôdu, o primeiro dia será sempre a “sua” quinta-feira inaugural; os outros (dez no total), uma recolecção das suas melhores vivências. Dos tempos em que descobriu o wôdu (leia-se ‘vôdu’) e percebeu que já o tinha antes de chegar a São Tomé.
Se calhar foi mesmo ele, o wôdu, que é como quem diz, a maturidade, que a conduziram a São Tomé. “Lá confirmou-se”, assume. Confirmou-se perante um dia-a-dia bastante diferente do que tinha conhecido. “O ambiente, o modo de estar na vida e perante a vida”, lembra. Não tinha, por exemplo, “máquina de lavar roupa, tv cabo e não sentia falta”. Tinha outras coisas. “Todos os fins-de-semana ia a cascatas, roças, praias”, conta, “e lavar a roupa no tanque não custava, afinal, nada”. Para trás, haviam ficado mais de 20 anos a trabalhar como designer de moda, dez com o Luís Buchinho, o restante com a marca própria, Saymyname.
Com esta, “feita de peças de autor, confortáveis, mas com detalhes e materiais que acrescentassem valor”, entrou no mercado asiático, “com agentes em Hong Kong e Japão”. Conseguiu, por exemplo, vender para uma loja em Hong Kong, a Liger, que seguia religiosamente online (“pensava sempre ‘quem me dera que me comprassem’ e um dia surgiu uma encomenda”), vendeu para a Harvey Nichols (em Singapura e Coreia do Sul) – e, um dia, a “Madonna chinesa”, Sammy Cheng, envergou uma das suas peças num concerto, “num pavilhão gigante, com mais de 60 mil pessoas a assistirem”. “A camisola era minha mas estava tudo mal combinado”, diz entre risos. Entretanto, surgiu o kpop e as marcas sul-coreanas impuseram-se, a metade do preço (“os envios desde Portugal são muito caros”).
Catarina não baixou os braços. Abriu uma loja nas Galerias Luimère (Porto), com projecto de autor, para trabalhar o mercado nacional – “Não funcionou muito bem, também nunca se percebeu completamente o conceito das galerias”. Foi dar aulas. “Tinha marca, loja e aulas. Só não tinha vida.” “Chegas a uma certa idade e começas a questionar uma série de coisas.” Agora tem 44 anos, tinha 42 dois quando a inquietação chegou. E, entre ela, um amigo que lhe falou em São Tomé e Príncipe. Já tinha vivido um ano entre o Porto e Cabo Verde (ilha do Sal). Acendeu-se “uma luzinha”, afirma.
Porque não voltar a África? Pesquisou sobre São Tomé: “Não é violento, fala-se português, é tropical”, resume. Tomou a decisão de arriscar.“Tinha uma situação que me permitia”, reconhece, “muitos querem fazer o mesmo mas não podem”. Antes de ir, procurou alguma coisa lá na sua área – indicaram-lhe o Espaço Cacau, que teria residências artísticas. “Não estavam a funcionar.” Ainda assim foi no Espaço Cacau que a aventura são-tomense foi ganhando forma.
Dário Pequeno Paraíso acabaria por abrir-lhe uma porta inesperada: a da primeira edição da São Tomé & Príncipe Fashion Week, que contaria com “nomes sonantes”, como Filipe Faísca e Dino Alves, por exemplo. “Desafiou-me a apresentar a minha colecção, mas eu já não tinha nada, tinha vendido tudo”, recorda, “então, propus desenvolver uma colecção de raiz, com gente e materiais são-tomenses.”
João Carlos Silva, grande dinamizador da cultura em São Tomé, apoiou a iniciativa através da associação Roça Mundo e o projecto avançou. Catarina repensou a cultura e tradições locais e pegou numa máquina de costura pela primeira vez em 20 anos: trabalhou em palha e folhas de bananeira, fez estampagens em tecidos e até sandálias com solas de pneu, inspiradas nos chinelos que viu nos pés de um rapaz, pneu por baixo, plástico por cima. Correu bem, conta. “O João Carlos Silva viu que eu gostava do país e convidou-me para a formação em Angolares.”
Entretanto, vivia. Fazia-se “mãe grande” para o grupo de amigas 20 anos mais novas – “a idosa, a velha, que em Portugal tem conotação negativa e lá não, lá é sabedoria e têm grande respeito, pedem a bênção” –, embrenhava-se pelo país com são-tomenses que apenas lhe diziam “faz a mochila” – “nem sabia para onde ia, fazíamos campismo em casas abandonadas, praias…” –, acompanhava portugueses, os que lá viviam e os amigos em visita, nas incursões pela ilha – “diziam que gostavam de ir aqui ou ali mas não queriam ir sozinhos nem contratar guia, então eu dizia, ‘eu vou’”. Ia e “falava com os locais, entrava em casa deles”.
Começou a entender como funcionava o país e a conhecer-lhe a essência. Na praia, habituou-se à curiosidade de ser “a única branca”; nas ruas e nas roças aprendeu a lidar com as crianças “que pedem doces”. Percebeu que há normalmente uma segunda intenção nas abordagens mas que uma recusa não apaga o interesse genuíno dos são-tomenses.
Até que, em 2018, teve de vir embora, “por causa do visto”. Em Portugal, tentou “voltar aos trapos”, sem sucesso. “Tinha 20 anos de carreira, enviei mais de cem currículos”, conta, “e nada”. Encontrava pessoas, perguntavam-lhe por São Tomé, viam-na entusiasmada e começaram a repetir-se mantras. “O que estás a fazer cá?” ou “Hás-de dar-me dicas”, escutava invariavelmente. “Porque hei-de dar dicas? Vou mas é eu lá”, decidiu.
Conhece muito bem São Tomé, conhece hotéis e guest houses (trabalhou, aliás, numa), conhece pessoas. Montou um roteiro em volta de praias, história (roças), cascatas e lagoas, natureza (fala várias vezes do Parque Natural Obô), “porque é o que se procura mais”, assegura. Inclui alojamentos sustentáveis e guest houses que conhece, a travessia para o ilhéu das Rolas é feita com “a mesma pessoa de sempre”, as caminhadas na selva com Jejê, um guia florestal “que conhece tudo, vibra com a floresta” (“quando o vejo na cidade parece que vai encolhido”), os restaurantes têm vista – mas guarda uma lista de “casas de mulata” para recomendações nas refeições livres.
Em 2020 vai regressar quatro vezes a São Tomé com grupos (em Fevereiro, Abril, Junho e Agosto). Regressa com (mais) wôdu – e mais leve. Em São Tomé aprendeu um novo estilo de vida, mais espartano, digamos. “Quando vivia lá, não tinha praticamente nada”, nota, “e eu sou da moda”. “Roupas, maquilhagens…”. “É verdade que nunca fui exagerada, mas agora tenho menos”, assume, “e ainda assim acho que tenho muitas coisas. Quero condicionar-me a muito pouca coisa”. Leve-leve, como dizem os são-tomenses.